Em 2º turno de votação, PEC 241 teve 359 votos favoráveis, 51 acima do necessário. Senado deve avaliar proposta até 13 de dezembro
A Câmara dos Deputados aprovou, em segundo turno de votação, o texto-base da Proposta de Emenda à Constituição que congela os gastos públicos por 20 anos, com profundo impacto nos orçamentos da saúde, educação e assistência social. A votação dos destaques apresentados pela oposição deve ser encerrada na noite desta terça-feira 25.
Para angariar apoio à drástica proposta de arrocho fiscal do governo Temer, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM), promoveu um jantar na noite anterior para parlamentares da base governista. Após a mesura, 359 deputados votaram a favor da chamada PEC 241, 51 acima do necessário.
O convescote parece uma reedição do bem sucedido banquete oferecido por Michel Temer – e custeado com recursos públicos – a deputados aliados às vésperas da votação em primeiro turno da proposta. Na ocasião, o texto do relator Darcísio Perondi, do PMDB, foi aprovado pelo dilatado placar de 366 votos favoráveis e 111 contrários.
A PEC 241 segue, agora, para o Senado, onde também precisará passar por dois turnos de votação. Pelo calendário proposto pelo presidente da Casa Legislativa, Renan Calheiros, a emenda pode ser aprovada definitivamente em 13 de dezembro.
De acordo com a proposta, todas as despesas públicas serão corrigidas de um orçamento para o outro apenas com base na inflação do ano anterior. Não haverá aumentos reais. Desse modo, crê o governo, o pagamento da dívida pública não correrá perigo, os investimentos privados na economia voltarão e o crescimento virá a reboque.
A decisão de congelar os gastos públicos ameaça, porém, o conjunto de políticas que permitiu a ascensão social de milhões de brasileiros ao longo dos últimos anos. No estudo “O Novo Regime Fiscal e suas Implicações para a Política de Assistência Social no Brasil”, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alerta para o possível desmantelamento de programas como Bolsa Família, Proteção Social Básica (PSB), Programa de Segurança Alimentar e Benefício de Prestação Continuada, previdência para cidadãos de baixa renda que não contribuíram na vida ativa.
De acordo com a pesquisa, esses programas consumiram 1,26% do PIB em 2015 e, com a aprovação da PEC do teto, o gasto encolheria para 0,7% do PIB em 20 anos. O estudo conclui, assim, que em 2036 a assistência social contaria com “menos da metade dos recursos necessários para manter a oferta de serviços nos padrões atuais”. Em termos absolutos, a perda acumulada do setor será de 868 bilhões de reais.
Campello: “Na assistência social, será um retorno ao início dos anos 1990”
“Com a PEC 241, chegaríamos em 2036, na melhor das hipóteses, com recursos que tínhamos no inicio dos anos 1990. É um retrocesso muito grande”, avalia a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social do governo Dilma Rousseff. “Quem de fato fica vulnerável é a população mais pobre, as crianças em situação de violência, as mulheres, a população de rua. Com o congelamento dos recursos, todas as áreas serão impactadas, mas áreas mais consolidadas como política pública, como a saúde e a educação, tem mais condição de resistir”.
No Brasil, o principal operador das políticas de assistência social são os municípios, que recebem co-financiamento do governo federal para executá-las, explica Campello. As prefeituras são responsáveis, por exemplo, pelos abrigos para crianças em situação de rompimento do vínculo familiar. “Esse co-financiamento vai desaparecer. Acho que os novos prefeitos não estão cientes dessa realidade com a qual vão se deparar”.
Receosos da impopularidade da medida, o relator Perondi havia feito uma alteração: no caso específico de saúde e educação, o congelamento começará só em 2018, último ano de mandato de Temer. Com isso, espera-se que a população não sinta muito os efeitos em escolas e hospitais a tempo de punir seus representantes nas urnas na eleição de 2018. A propósito: na campanha de 2014, Temer doou 100 mil reais à candidatura de Perondi.
Emenda ignora crescente demanda por serviços de saúde
O congelamento de gastos sociais ignora as transformações pelas quais o Brasil passa e que vão impactar diretamente a área da saúde. José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde do governo Lula, observa que o Brasil passa uma transição demográfica bem peculiar, marcada pelo acelerado envelhecimento da população, praticamente na metade do tempo que a França levou para concluir esse mesmo processo.
Em recente entrevista a CartaCapital, ele também aponta uma mudança no padrão das enfermidades: “A Organização Mundial da Saúde projeta que, em 2030, as principais causas de mortalidade no mundo não serão mais as doenças cardiovasculares ou cerebrovasculares, e sim o câncer, que tem um custo de tratamento altíssimo”.
Enquanto a tendência da população é demandar mais da saúde pública, o Congresso propõe um congelamento de gastos por vinte anos que implica em uma perda acumulada de 654 bilhões de reais para a saúde, em um cenário de crescimento do PIB de 2% ao ano, segundo uma nota técnica divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O conteúdo do documento irritou o presidente do Ipea, Ernesto Lozardo, que usou o site e os canais de comunicação da instituição para questionar publicamente o estudo, algo inédito na história do Ipea. Lozardo disse que as análises feitas “são de inteira responsabilidade dos autores”. A situação levou a pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira, uma das autoras, a pedir exoneração.
Sem recursos para incluir 3 milhões de crianças e adolescentes nas escolas
A emenda constitucional também acarretará em impactos profundos na educação. No Brasil, o setor é subfinanciado e precisa resolver gargalos como a universalização do atendimento, em especial na pré-escola e na creche. De acordo com o Censo Escolar, 3 milhões de brasileiros de 4 a 17 anos estão fora das salas de aula. Ademais, se o País deseja sair da rabeira dos rankings internacionais de qualidade de ensino, terá de investir na formação dos professores e na valorização da carreira docente.
“Com a manutenção dos gastos no atual nível, como propõe a PEC 241, não será possível nem sequer incluir todos os brasileiros com 4 a 17 anos na escola, muito menos com professores competentes e bem formados”, analisa o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação.
O desafio torna-se ainda maior diante da perversão do sistema orçamentário. “No orçamento, as despesas mais difíceis de se abater são aquelas mais injustas, enquanto as mais fáceis de cortar são as justas”, opina o filósofo, citando a dificuldade de se reduzir as despesas do Legislativo e do Judiciário. “É mais fácil cortar o que é mais essencial”.
Presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, o deputado Chico D’Angelo (PT-RJ) alerta que a PEC 241 trará profundo impacto para setores como meio ambiente, ciência e cultura. “As despesas com saúde e educação são obrigatórias. Com a cultura, são discricionárias, não obrigatórias. Nisso reside um problema da maior gravidade”.
“A ideia original do governo era extinguir o Ministério da Cultura, fato que só não ocorreu em virtude da reação da sociedade. Agora, arma-se o cenário para a inviabilização da pasta e configura-se um modelo que desmantelará políticas públicas no campo da cultura”, emenda D’Angelo.
A falácia do equilíbrio das contas públicas
Desde 2003, com exceção aos dois últimos anos, os governos federais gastaram menos do que arrecadaram em despesas primárias como saúde, educação e assistência social. Segundo o economista João Sicsú, professor da UFRJ e colunista de CartaCapital, o déficit orçamentário está relacionado mais ao pagamento de juros, atualmente fixados em 14%.
“Não precisa ser economista, especialista em contas públicas, para perceber que o que faz o déficit orçamentário são as despesas com o pagamento de juros da dívida pública. Se dependesse dos gastos somente nas áreas que fazem o gasto primário sempre haveria superávit orçamentário, exceto em conjunturas específicas”, analisa o economista.
“A PEC desmontará o Estado brasileiro e suas políticas sociais pelo simples fato de que o que necessitamos são mais gastos per capita em diversas áreas, com destaque para saúde e educação”, afirma Sicsú. “Não temos, tais como diversos países europeus, um Estado de bem-estar conformado. E o desenvolvimento brasileiro é essencialmente a construção de um Estado de bem-estar social.”
Fonte: Carta Capital