Em rodas femininas, são recorrentes as conversas sobre o que teria sido a sorte grande da atriz, jornalista e tradutora Vera Gertel, ao se casar com três homens tidos como para lá de interessantes: pela ordem das uniões, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o compositor Carlos Lyra e o jornalista Janio de Freitas.
A leitura do livro de memórias de Vera, Um Gosto Amargo de Bala (Civilização Brasileira), consolida a suspeita de que sortudos mesmo foram seus ex-maridos. Em um tempo em que tanta gente escrevinha autobiografias com a ilusão de que irrelevâncias possam encantar os outros, a autora contrapõe uma vida fascinante, com personagens marcantes no teatro, no jornalismo e na esquerda do Brasil da década de 1930 à de 1970, quando termina o relato. Não é à toa que o volume ostente apresentadores ilustres nas orelhas e em sua contracapa: os jornalistas e escritores Ruy Castro, Carlos Heitor Cony e Luis Fernando Verissimo.
Vera nasceu em 1937, filha de um casal de comunistas, o futuro jornalista (inclusive da Folha) Noé e a tecelã Raquel Gertel. Devido à perseguição da ditadura do Estado Novo (1937-45), veio ao mundo em São Paulo, mas a registraram no Rio. A mãe escolheu para o bebê o nome de Anéli, homenagem à frente de esquerda ANL (Aliança Nacional Libertadora), banida em 1935. O pai, mais sóbrio, temeu por encrencas e a inscreveu no cartório como Vera. Logo ele foi preso por “subversão” e, anos depois, a filha o visitou no presídio de Ilha Grande. Em 1940, Raquel também perdeu a liberdade, depois de dar vivas em público ao dirigente comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990). A menina não parava de berrar o nome da mãe ao ir ao seu encontro na sede da polícia política carioca.
Com a democracia e o tempo, Vera tornou-se mais uma militante do Partido Comunista na família. No fim da década de 1950, formou com dois atores e camaradas, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), o Teatro Paulista do Estudante, que em seguida se juntou ao Teatro de Arena. Em seu casamento com Vianna, o padrinho da noiva foi o jornalista Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970), que com o nome de guerra “Toledo” ganharia fama como um dos principais líderes da guerrilha contra a ditadura pós-1964. O do noivo foi Guarnieri.
“Haja hoje para tanto ontem”
Na minissérie Anos Rebeldes, de 1992, os padrinhos se “reencontraram”: o ator viveu um papel inspirado no velho “Toledo”, morto na tortura em 1970. Com a conversão ao jornalismo, a afilhada de “Toledo” abandonou a celebrada carreira nos palcos. Uma de suas interpretações mais conhecidas ocorreu na peça Eles Não Usam Black-Tie, em montagem aplaudida pelo crítico Paulo Francis. Em 1968, outro crítico importante, Yan Michalski, aclamou como “um pequeno milagre interpretativo” a atuação da atriz em O Jardim das Cerejeiras.
Vera não deixava de militar. No golpe de Estado de 1964, estava na sede da União Nacional dos Estudantes quando o prédio foi atacado por ativistas de direita. Não demorou a se incorporar à logística da luta armada, apoiando, sobretudo, a ALN (Ação Libertadora Nacional).
Mesmo evocando carinhosamente figuras generosas e gestos de grandeza, Vera Gertel, 75, narra passagens duras e episódios de mesquinharia e miséria humana, até de coadjuvantes famosos. Por vezes, a memória equivale à catarse.
A autora conta tanto das querelas, sonhos e frustrações do século passado que surpreende com novidades até quem, como eu, acompanhou de longe a elaboração do livro. A epígrafe, versos do poeta Paulo Leminski condensados em uma frase, soa certeira: “Haja hoje para tanto ontem.”
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Mário Magalhães é jornalista, ex-ombudsman da Folha de S.Paulo e autor da biografia Marighella – o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (Companhia das Letras).