Por Pedro Celestino Pereira, Presidente do Clube de Engenharia
A Petrobras é a maior expressão da capacidade criadora do povo brasileiro. Símbolo da afirmação da vontade nacional, gestada a partir de ampla mobilização popular, endossada por expressivas lideranças militares, a sua criação foi, na década de 50 do século passado, a principal responsável pela crise política que levou Getúlio Vargas ao suicídio. Ousara ele desafiar o capital internacional que então dominava completamente a nossa economia, ao propor a criação de empresas estatais que alavancassem o nosso desenvolvimento industrial.
Por décadas enfrentando, desde o ceticismo de geólogos estrangeiros que, através da grande imprensa, viviam a apregoar que no Brasil não havia petróleo, até a oposição sistemática de forças políticas que sempre se pronunciaram e se pronunciam abertamente a favor da entrega do negócio do petróleo ao capital estrangeiro sob a alegação de que, aqui, não há capacidade técnica nem capital para desenvolvê-lo, a Petrobras arrostou todos os obstáculos e firmou-se como uma das maiores empresas petrolíferas do mundo.
Claro está que, em empresas do porte da Petrobras, públicas ou privadas, sempre houve e haverá irregularidades e malfeitos. O que cabe discutir hoje é o processo que levou a Petrobras à incômoda situação em que se encontra, de modo que possamos defendê-la, no momento em que se pretende fragilizá-la para permitir o assalto estrangeiro às maiores reservas de petróleo descobertas nos últimos 30 anos, as do Pré-Sal.
Até 1973 quando, aproveitando-se da guerra Israel-Egito, a Arábia Saudita nacionalizou a exploração e produção de petróleo no seu território, era usual o imperialismo ir à guerra ou derrubar governos que contestassem seu domínio sobre o negócio do petróleo. Diante da impossibilidade de derrubar a monarquia saudita, foi obrigado a conviver com empresas estatais, e a buscar novas formas para assegurar seu domínio. Data de então o início do processo de cooptação e de corrupção de dirigentes de estatais na área de petróleo.
Aqui, esse processo teve início de forma sistemática no primeiro mandato de FHC quando, com Joel Rennó, tecnocrata vindo da Vale do Rio Doce, na presidência da Petrobras, decidiu-se estabelecer uma parceria para desenvolver o campo de Marlim, então a maior reserva da empresa, sob a alegação de não havia recursos financeiros suficientes para fazê-lo sozinha. Constituiu-se então uma empresa, a Companhia Petrolífera Marlim, liderada pelo ABN-AMRO Bank, presidido pelo senhor Fabio Barbosa, em seguida nomeado membro do Conselho de Administração da Petrobras, ao mesmo tempo em que outro funcionário do mesmo Banco, Ronnie Vaz Moreira, assumia a diretoria financeira da Petrobras. A Companhia captou 1,5 bilhão de dólares no mercado internacional, dando em garantia o petróleo a ser produzido e a garantia corporativa da Petrobras. Por que, então, a parceria? Mais ainda, assegurava-se ao ABN AMRO Bank e ao J P Morgan, também sócio da empresa, remuneração mínima para o capital que proventura viessem a aportar, eliminando qualquer risco financeiro deles. É o que se convencionou chamar de cláusula Marlim, à baila hoje no noticiário sobre a compra da refinaria de Pasadena.
Rennó também sustou a realização de concursos para a reposição do quadro técnico da empresa e deu início a vigoroso processo de terceirização de atividades, com empresas nacionais e estrangeiras. Visava-se com isto fragilizar a empresa e prepará-la para a privatização.
No segundo mandato de FHC, Rennó foi substituído por Henri Phillipe Reichstul. Este contratou a A.D.Little (ADL), consultora norte-americana, para reestruturar a empresa. A ADL aboletou-se em um andar contíguo ao da diretoria no edifício-sede da Petrobras, e passou a ter acesso indiscriminado às informações confidenciais da empresa. Note-se que esse processo se deu ao tempo em que era rompido o monopólio estatal do petróleo e em que, criada a Agência Nacional de Petróleo – ANP, sob a batuta do então genro de FHC, David Zylberstein, tinha início o leilão das reservas de petróleo brasileiras, em modelo que não se aplica no mundo desde o primeiro choque do petróleo, permitindo à concessionária apossar-se do petróleo produzido, remunerando o Governo com royalties, ao invés de receber por prestação de serviços.
A ADL recomendou fatiar a Petrobras em Unidades de Negócio, para permitir a sua privatização por etapas (a Refinaria Alberto Pasqualini chegou a ter 30% do seu capital vendido à YPF argentina, então controlada pela Repsol espanhola), dissolver o Serviço de Engenharia (Segen) da Petrobras, o cerne da acumulação de conhecimentos técnicos da empresa, e criar uma gratificação de desempenho para o escalão dirigente da empresa, para quebrar a unidade do corpo técnico e facilitar a sua cooptação para as propostas privatizantes. Reichstul propôs a venda ao mercado do excedente ao mínimo que assegurasse à União o controle acionário da empresa. Assim, 40% do capital da Petrobras passaram a controle estrangeiro.
Para o Conselho de Administração em dado instante foram indicados Andrea Calabi (hoje secretário de Fazenda de Alckmin em São Paulo) e Gerald Heiss (ilustre desconhecido) que tinham em comum o fato de serem sócios da empresa Consemp, o que lhes dava uma influência desmedida naquele colegiado. Ainda na gestão de Reichstul Delcídio Amaral, indicado pelo PFL (fora diretor da Eletrosul no governo Collor e secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia no governo Itamar), assumiu a diretoria de Gás e Energia. Sua gestão caracterizou-se por entregar, sem licitação, participação acionária em 14 das 22 distribuidoras de gás estaduais das quais a Petrobras era sócia, a empresas controladas por Carlos Suarez, do grupo OAS, de notórias ligações com o senador Antonio Carlos Magalhães, maior liderança do PFL, e à Enron e à El Paso, e por contratar a construção de 3 termelétricas a gás com a MPX de Eike Batista e, mais uma vez, com a Enron e com a El Paso, quando se sabia que não haveria oferta de gás suficiente, supostamente para resolver a crise de demanda de energia que levou ao apagão de 2001.
Quando Lula assumiu em 2003, esperava-se que o esvaziamento da Petrobras fosse sustado. Infelizmente, tal não ocorreu. Afora a indicação de Guilherme Estrella, técnico de reconhecida competência e probidade, para a diretoria de Exploração e Produção e de Ildo Sauer, especialista em energia vindo da USP, as demais diretorias técnicas foram ocupadas por profissionais de notório comprometimento com práticas lesivas ao interesse público, como se verá a seguir.
Delcídio Amaral, ao vislumbrar a ascensão de Lula, abandonou o PFL e migrou para o PT, vindo a eleger-se senador por Mato Grosso do Sul, seu Estado natal. Pleiteou então ser ministro de Minas e Energia. Lula, entretanto, já se comprometera com a nomeação de Pinguelli Rosa, diretor da Coppe/UFRJ. Diante do impasse, Lula optou por convidar Dilma Roussef, então secretária de Energia do Rio Grande do Sul, para ser a ministra. Delcídio, então, pleiteou a diretoria de Gás e Energia da Petrobras para seu indicado, Nestor Cerveró, que com ele trabalhara na negociação dos contratos das termelétricas. Como Ildo Sauer já havia sido convidado para o cargo, Cerveró passou a ocupar a diretoria Internacional da Petrobras. Já a diretoria de Abastecimento foi oferecida ao PP, cabendo ao então líder na Câmara dos Deputados, José Janene, indicar o seu conterrâneo paranaense Paulo Roberto Costa para o cargo. Paulo Roberto era na ocasião superintendente da TBG, empresa constituída pela Petrobras e pela Enron, grupo americano que quebrou espetacularmente no final dos anos 90 para construir o gasoduto Brasil – Bolívia.
Na TBG a Petrobras entrou com o dinheiro e as garantias em financiamentos bancários, e a Enron, com 50% dos resultados, prática usual nas parcerias feitas pela empresa a partir da gestão de Rennó. Janene em 2005 foi envolvido no escândalo do chamado mensalão. Paulo Roberto ficou, assim, sem sustentação política. Foi salvo por Jader Barbalho, e passou a ser bancado pelo PMDB. Paulo Roberto teve sob sua responsabilidade 2 grandes investimentos da Petrobras: o pólo petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e a Refinaria de Abreu e Lima, em Pernambuco. Ambos tiveram seus orçamentos inflacionados em escala jamais vista em empreendimentos da mesma natureza. Completa a lista de indicações políticas de Lula a presidência da Transpetro, a empresa de navegação e de dutos da Petrobras, entregue a Sergio Machado, ex-senador, líder do governo FHC, apadrinhado por Renan Calheiros.
Vê-se, assim, o progressivo desprestígio do corpo técnico da empresa, mais e mais limitado à função de carimbador de faturas, porta aberta para a deterioração dos padrões de comportamento funcional.
No primeiro mandato de Lula, Ildo Sauer solicitou a Eros Grau, maior autoridade brasileira em direito administrativo (não fora ainda nomeado ministro do STF), parecer sobre os contratos das termelétricas assinados por Delcídio. Neles, os sócios privados (a MPX de Eike Batista na termelétrica de Fortaleza – CE, a Enron na de Seropédica – RJ e a El Paso na de Macaé – RJ) tinham lucro garantido (a sempre presente cláusula Marlim), pois se não houvesse gás para acionar as térmicas a Petrobras se obrigava a remunerá-los com elas paradas. O parecer de Grau foi taxativo: ensejavam enriquecimento sem causa. Os contratos foram, então, rescindidos pela Petrobras. Se mais não fizesse, bastaria essa ação para consagrar a gestão de Sauer como diretor da empresa. Sauer, entretanto, não sobreviveu como diretor. No segundo mandato de Lula foi substituído por Graça Foster, especialista em gás e energia oriunda do Cenpes, o Centro de Pesquisas da Petrobras. Cerveró deixou a diretoria Internacional da empresa em 2008, entregando-a a Jorge Zelada, indicado por Jader Barbalho e Renan Calheiros. Manteve-se portanto na Petrobras nas gestões de Dutra e Gabrielli a estrutura de poder estabelecida na gestão Rennó até a ascensão de Graça Foster à presidência da empresa, já no governo Dilma.
No período Lula, porém, graças à pertinácia de Estrella, que prestigiou o corpo técnico que recebera, desmotivado, das gestões Reichstul e Gros do segundo mandato de FHC, a Petrobras fez a maior descoberta mundial de petróleo dos últimos 30 anos: o chamado Pré-Sal. Lula, então, decidiu enfrentar a pressão internacional para entregar o petróleo nos moldes propostos pela ANP. Optou por atribuir à Petrobras a exclusividade das operações no Pré-Sal e por remunerar os eventuais parceiros da empresa por prestação de serviços, e não em petróleo. O Congresso Nacional, em 2010, aprovou o modelo proposto pelo Governo Lula. A partir daí, teve início campanha sistemática de descrédito da Petrobras, culminando com a ofensiva atual, na imprensa e no Congresso, destinada a incutir na opinião pública que a Petrobras é um caso perdido, típico da má gestão do Estado.
Viu-se aqui que vem de longe o descaminho da Petrobras, noticiado apenas quando convém aos grupos interessados em destruí-la.
A Petrobras pode e deve ser defendida, o que não implica negar a necessidade de mudanças na sua gestão, de forma a permitir maior controle e transparência das suas ações. Não pode a empresa continuar refém de interesses, seja corporativos, seja privados, nacionais e estrangeiros, que se apropriaram dos seus principais postos de direção, afastando-a dos objetivos para os quais foi criada.
Não há o que temer na apuração dos crimes cometidos. Impõe-se resgatar o papel do corpo técnico da empresa, restabelecer a competência da engenharia, que levou a Petrobras a conquistar inúmeros Prêmios Internacionais de Excelência, e desfazer a ruinosa reestruturação empreendida por Reichstul, de modo a devolver a Petrobras à condição de empresa símbolo do orgulho nacional brasileiro.