As reformas trabalhista e previdenciária foram explanadas e debatidas com profundidade na última reunião da Conselho Deliberativo do Senge-PR, no dia 6 de maio, na sede de Curitiba. Os advogados Ramon Bentivenha e Henrique Kramer palestraram para uma plateia de quase 40 engenheiros e engenheiras, diretores estaduais e regionais do sindicato.
Ramon Bentivenha é especialista em Direito Constitucional, com ênfase no Serviço Público, integrante dos coletivos Direitos Pra Todxs e do Advogados pela Democracia e também foi membro da Comissão Nacional de Controle Social dos Gastos Públicos do Conselho Federal da OAB. Henrique Kramer é assessor jurídico de sindicatos de servidores públicos, com experiência em direito administrativo.
Com vídeos, gráficos, charges e muito diálogo, os advogados partiram das primeiras leis trabalhistas e chegaram no cenário atual do Brasil. A seguir, apresentamos os principais conteúdos da palestra, sintetizado para servir de subsídio a novas formações sobre os temas.
Linha do tempo das conquistas trabalhistas
Para chegar às críticas relacionadas às reformas dos tempo atuais, Ramon Bentivenha foi a 1802, Inglaterra, e relembrou a primeira lei trabalhista de que se tem registro. A “Moral and Health Act” (Lei da Moral e da Saúde) foi criada no contexto da Revolução Industrial, quando a precarização das condições de trabalhos eram extremas e as jornadas iam de 16 e 18 horas. Resultado de forte pressão dos operários, a lei trouxe mudanças para as regras do trabalho das crianças: a jornada passou para 12 horas e o trabalho noturno foi proibido para os menores de idade. O advogado chamou atenção para o fato de que, apesar da flagrante violência contra crianças, houve quem se posicionasse contra, alegando tratar-se de privilégio.
Mais de 80 anos depois, em 1888, o Brasil oficializa a abolição da escravatura e o trabalho assalariado avança com a chegada dos imigrantes. No período entre a abolição e a Revolução de 1930 (que põe fim à “República Velha”) algumas poucas regras foram criadas para mediar a relação entre capital e trabalho. A principal delas relacionada à Previdência data de 1923 – lei Eloy Chaves. Em um país essencialmente agrícola, e a lei garantiu aposentadoria e pensão aos ferroviários, que adentravam o interior o país em jornadas arriscadas, expostos a acidentes, desgaste físico e doenças, portanto mais vulneráveis à perda ou à redução da capacidade laboral e consequente incapacidade de sustento da família.
A pressão das demais categorias operárias fez com que, em 1928, o direito à aposentadoria por idade, invalidez, pensão por morte e assistência médica fosse estendido a mais trabalhadores. É com a Constituição de 1934, da Era Vargas, que se estabelece a configuração atual do custeio da Previdência Social, com base no tripé: trabalhadores, governo e empresários. “Nosso principal problema hoje é que o governo e os empresários deixam de cumprir com a sua parte na Previdência. Os únicos que estão em dia são os próprios trabalhadores”, explica Bentivenha.
Em 1943, Vargas realiza o que emerge na história do Brasil como um de seus maiores feitos: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Conquistadas após intensas lutas anteriores, as previsões da CLT de 75 anos atrás hoje tem sido caracterizadas pelos defensores da reforma trabalhista e previdenciária como ultrapassadas. Ramon Bentivenha apresenta dados para refutar o rótulo dado à CLT: dos 821 artigos vigentes, 406 foram alterados ao longo dos anos – cerca de 49%. O maior número de alterações ocorreu em 1967, durante a ditadura militar, quando 180 quesitos mudaram. Na história da CLT, a reforma trabalhista proposta em 2016 é a segunda maior.
A Constituição Federal de 1988 traz a configuração atual da Seguridade Social, que abarca Saúde, Assistência Social e Previdência Social, mantendo o financiamento tríplice criado em 1934. “São três eixos que um não existem um sem o outro. Se o trabalhador, ao longo da sua vida profissional, precisa de saúde, assistência social ou da Previdência, a Seguridade Social deveria garantir”.
Já nas décadas seguintes, houve retrocessos pelo não cumprimento da Constituição no que diz respeito ao pagamento tríplice: empresas devem cerca de R$ 426 bilhões em recolhimento para a Previdência; por meio da Desvinculação de Receitas da União (DRU), o governo retira cerca de 30% do valor arrecadado pela Seguridade Social para usar em outras finalidades, como em pagamento da dívida pública; e 89% do total de municípios brasileiros acumulam dívidas previdenciárias. “Nós, trabalhadores, somos os únicos em dia com a previdência, e seremos os únicos prejudicados com a reforma”, garante Bentivenha.
A marcha ré veio devido a reformas promovidas ao longo dos anos seguintes. Entre os problemas listados pelo advogado está a taxação de aposentados e pensionistas que recebem acima do teto; a criação do fator previdenciário; regra dos 85/95 para pagamento integral do benefício; perda da integralidade, paridade e isonomia para os servidores; endurecimento nas regras de aposentadoria por invalidez e auxílio-doença; e a implantação da aposentadoria complementar (privada).
Na avaliação do advogado, a criação do regime complementar, durante o governo FHC, se caracteriza com um dos “principais crimes” contra a Previdência, por tratar-se de um fundo privado gerido por instituições financeiras como Itaú Unibanco, Bradesco, Petros, Prudential, etc, que não oferece segurança para o trabalhador, por exemplo, em caso de falência.
Na avaliação do advogado, desde a primeira lei trabalhista inglesa até a Constituição de 1988, houve uma gradativa conquista de direitos, mas não por iniciativa dos governos ou dos empresários: “Nestes 186 anos, nada foi dado aos trabalhadores, cada ponto foi conquistado”, frisou.
Previdência ameaçada
Apesar dos retrocessos em direitos ao longo das décadas, nada se compara às reformas propostas em menos de um ano do governo de Michel Temer. Durante a apresentação feito aos engenheiros, Ramon Bentivenha mostrou os principais pontos críticos da proposta de reforma da Previdência enviada pelo executivo ao Congresso em 2016, no início de dezembro.
O primeiro deles é a tentativa de impor idade mínima – que hoje não existe -, igualando a idade da aposentadoria para homens e mulheres. A proposta original era de 65 anos para ambos e, após inúmeras manifestações contrárias, o texto-base aprovado na Comissão Especial da Câmara baixou para 62 anos para mulheres – o que continua sendo um retrocesso. Sob o pretexto de “igualar direitos”, a proposta ignora o fato de que a média de horas semanais dedicadas às tarefas domésticas é de 23,8 horas para mulheres e 10,6 horas para homens, para a faixa de renda de até 1,5 salários mínimos. Portanto, a dupla um tripla jornada das mulheres é desconsiderada nos planos no governo.
Para chega ao valor integral do benefício, o trabalhador teria que contribuir por 40 anos (o texto original propunha 49 anos). O advogado chama atenção para o quanto estas quatro décadas de contribuição poderão ser dificultadas pela provação da terceirização irrestrita, que tende a aumentar a rotatividade e a precarização das oportunidades de trabalho.
Sobre a retirada dos servidores municipais do raio da idade mínima e do tempo de contribuição, Bentivenha alerta: “É uma informação que não condiz com a verdade, uma vez que as regras para idade mínima e tempo de contribuição são constitucionais e por isso todos os entes federados devem cumpri-las”.
Diante destes e de outros retrocessos que poderão ser trazidos, caso a reforma seja aprovada, Ramon Bentivenha aponta como o mais prejudicial a todos os trabalhadores o cálculo do valor do benefício a partir da média de todos os salários. Com cenário de desemprego, avanço da terceirização, a tendência é de queda da média salarial para diversas categorias. Atualmente o cálculo do valor do benefício é feito a partir da média dos 80 maiores salários.
Por fim, o advogado voltou ao início dos anos 1800, no contexto da primeira lei trabalhista, quando a conquista da redução da jornada de trabalho das crianças para 12 horas foi criticada por alguns setores como sendo um privilégio. O discurso do “fim dos privilégios” é o que permeia as propagandas do governo federal, em especial para a proposta de extinção do regime próprio para funcionários públicos. “O discurso da ‘igualdade de direitos’ e ‘fim dos privilégios’ oculta o debate mais importante para todos os trabalhadores, que seria o da ampliação dos direitos e aplicação da regra dos servidores públicos a todas as categorias”. Na prática, Bentivenha avalia que quem se favorece com essa proposta são os que dominam os regimes complementares privados.
Discurso oficial
O advogado chama atenção para a disparidade entre o discurso oficial análise da sociedade civil sobre a reforma da Previdência. Para além do conteúdo das informações que têm sido divulgadas, o que se diferencia são as condições para difusão das duas visões antagônicas: o governo federal gastou cerca de R$ 55 milhões recursos públicos (pagos a duas agências) em propagandas publicitárias favoráveis à reforma da Previdência, enquanto as opiniões divergentes pouco aparecem nos veículos de comunicação massiva e nacional.
Bentivenha faz uma distinção entre a propaganda feita pelo PMDB, via redes sociais, e a feita pelo governo: “Do ponto de vista democrático, eu posso não concordar, mas é uma propaganda partidária, o partido tem o direito de fazer. O problema se dá quando é usado o nosso dinheiro para defender um um projeto unilateral, que sequer foi discutido no Congresso”. As peças publicitárias do governo são no tom de uma “disputa eleitoral”, com falas pausadas, frases de efeito e falas com roupagem positiva, mesmo tratando-se da retirada de direitos. Para exemplificar a análise, o advogado comparou as peças “Minuto da Previdência” a um vídeo que destrincha as campanhas eleitorais.
Em um dos vídeos do governo, Marcos de Barros Lisboa é o especialista entrevistado para referendar a necessidade da reforma. Bentivenha chama a atenção para outra informação não apresentada pelo discurso oficial: além de colunista da Folha de S. Paulo, o empresário é vice-presidente do Itaú Unibanco, um dos gigantes da Previdência privada.
No dia 15 de março, uma decisão liminar da 1ª Vara Federal de Porto Alegre (RS) chegou a determinar a suspensão imediata da campanha do governo Temer relacionada à reforma da Previdência. A decisão foi acompanhada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mas acabou suspensa pela presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, no dia 4 de abril. “Alguns processos demoram anos para serem julgado, e este foi resolvido e semanas”, questiona o advogado.
O “rombo” da Dívida Pública
O cenário de crise econômica tem sido usado pelas campanhas publicitárias do governo como cortina de fumaça para o principal e menos controlado gasto do Estado brasileiro nas últimas décadas: a Dívida Pública. Enquanto a Previdência significa gasto de 19,13%, saúde 3,16% e e educação 3,26%, o ralo da Dívida sugará 50,66% do PIB em 2017, segundo previsão do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI).
“Isso não está sendo discutido pelo Congresso ou apresentado pelo governo. Basicamente o que se discute são os gastos sociais, mas fica de fora o maior gasto, que é com a Dívida Pública”, questiona Bentivenha. Justamente esta fatia do gasto público é a única que ficou de fora da PEC 55, do congelamento dos gastos públicos, aprovada em novembro de 2016 e que deve vigorar por 20 anos.
Se por um lado o governo omite o principal gasto público, por outro diz que há um “rombo” nas contas da Previdência, apresentando dados refutados por diversos especialistas e entidades do ramo. O discurso oficial já abre brechas para dúvidas por apresentar dois diferentes valores de déficits ao longo dos pronunciamentos e campanhas. Ora é 140 bilhões, ora 150 bilhões. Para além da dúvida sobre os 10 bilhões dos cálculos do governo, a economista Denise Gentil cruzou receitas e despesas da Seguridade Social (que abarca Previdência, Saúde e Assistência Social) e constatou um superávit superior a 11 bilhões em 2015. Soma-se a isto a retirada pelo governo de 30% em desvinculações e a inadimplência do setor privado que chega quase passa dos R$ 420 bilhões, já citados anteriormente.
A reforma trabalhista da Fiesp
“Você vai nos Estados Unidos, vê o cara almoçando, comendo sanduíche com a esquerda, e operando a máquina com a direita. Tem 15 minutos para o almoço, entendeu? (…) Por que a lei obriga que tenha que ter esse tempo (uma hora de almoço)?”. Esta foi uma das declarações de Benjamin Steinbruch, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), durante entrevista à TV Folha em 2014.
O advogado Henrique Kramer usou este e outros trechos da entrevista para apresentar os pontos mais preocupantes da proposta de reforma trabalhista em tramitação no Congresso, já defendidos de maneira literal pelo industrial dois anos antes da presentação do PL 6787/2016. As 9 páginas do texto original, enviado pelo governo Temer ao Congresso no dia 23 de dezembro de 2016, tornaram-se 132 na versão do texto substitutivo, de 12 de abril de 2017.
Na avaliação do advogado, a proposta de colocar o negociado acima do legislado ignora as reais condições como se dão as relações de trabalho. Se hoje os acordos acontecem dentro de alguns parâmetros – da Constituição, da CLT e de lei esparsas -, com essa mudança, haverá a possibilidade de negociar e reduzir inclusive direitos já adquiridos.
“Na relação de emprego não existem partes que estão em igualdade, quem tem toda direção do trabalho é o empregador. Esse é o sentido do princípio protetivo do Direito do Trabalho. A reforma acaba com esse princípio. Querem fechar os olhos para a disparidade na relação de trabalho”, explica Kramer.
O registro do ponto é um dos quesitos que poderão ser negociados. Para o advogado, flexibilizar o registro pode abrir um espaço terrível para que o empregador possa fraudar a jornada de trabalho. A flexibilização dos limites da jornada de trabalho aparece em outras partes da proposta. Para a compensação das horas extras, por exemplo, é indicada a possibilidade de um acordo tácito entre patrão e empregado. Hoje, o limite de horas trabalhadas é de 8 diárias 44 semanais, à exceção de algumas categorias que utilizam o regime de 12 por 36. Já com a reforma, os funcionários poderiam trabalhar até 12 horas em um dia – 4 extras por dia -, e 48 horas semanais. Também seria permitido o teletrabalho, que consistiria em executar o trabalho de casa, com o ônus da implementação da função custeado pelo empregado. “O que essa proposta sugere é que não exista limite pra jornada de trabalho. Essa reforma vem em detrimento da saúde do trabalhador”, resume. O pagamento por horas em trânsito também seriam extinto.
Diante de todo o projeto, o advogado é categórico: “Nenhum dos dispositivos amplia direitos que os trabalhadores, só retira”. Na contramão do que propõem a reforma, Henrique Kramer vê na redução da jornada a única forma de criar novas empregos no Brasil.
Ataque à liberdade sindical
A reforma é estrutural e, caso aprovada, afetará também o exercício do direito coletivo de trabalho e a atuação sindical. Kramer aponta que há um número elevando de sindicatos no Brasil, em comparação com outros países: são 11 mil entidades – apenas 50% delas fazem acordo coletivo de trabalho, segundo a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Porém, o advogado avalia que o fim do Imposto Sindical visa enfraquecer a atuação das diversas categorias organizadas. Somando a essa proposta, outra o projeto cria um espécie de “sindicato paralelo”, por permitir que empresas com mais de 200 empregados possam eleger uma comissão de representação interna, que poderia substituir a entidade sindical. “Essa estrutura não vai conseguir coexistir com o sindicato”, alerta Kramer.
Com a vigência da legislação atual, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já realizou inúmeras cobranças ao Estado brasileiro por casos de impedimento à organização dos trabalhadores, de diversas categorias. Com a fragilização dos sindicatos e o negociado sobre o legislado, as práticas antissindicais se tornariam mais frequentes. “A negociação coletiva só vai ser benéfica aos trabalhadores se houver liberdade sindical”, garante Kramer.
No campo da Justiça do Trabalho, o funcionamento atual é voltado para ser menos onerosos para os empregados. Mas a proposta prevê uma mudança drástica, em que ao acesso à Justiça do Trabalho passa a não ser mais gratuito. Entraria em vigor a prática dos “honorários de sucumbência”, que obriga a parte perdedora a arcar com os custos do advogado da parte ganhadora. Com a justificativa de reduzir custos, a medida vai significar a inibição dos trabalhadores de entrarem com ações trabalhistas. Atualmente a fatia gasta em o Justiça no Brasil é de 1,8%.
“Não temos uma legislação trabalhista ruim. Se chega 4 milhões de demandas trabalhistas na Justiça do Trabalho não é por que a legislação é ruim, mas porque o empregador viola a lei”, opina o advogado.
Para o advogado, há um ataque às garantias constitucionais e esses direitos vão sendo paulatinamente flexibilizado. “A sustentação do governo Temer depende de quanto ele demonstrar ser capaz de aplicar as reformas. A tramitação no senado deve ser mais lenta do que na Câmara”.