Mais de 450 trabalhadores morrem todos os anos nas obras do país. Livro que retrata essa realidade e buscar formas de evitá-la foi lançado na segunda-feira (14), no Ministério Público do Trabalho. (Foto: Dênio Simões/Agência Brasília/Fotos Públicas)
Por Vitor Araújo Filgueiras*, para o Brasil de Fato
A construção civil é o setor com maior número de mortes de trabalhadores no Brasil, indicam os dados oficiais dos últimos anos, ainda que muito subestimados. Diante disso, é preciso identificar e problematizar fatores que explicam a perpetuação desses óbitos.
No Brasil, defender a redução dos acidentes de trabalho é algo parecido com atacar a desigualdade social. No campo retórico, é improvável encontrar quem defenda explicitamente a desigualdade social, como é cada vez mais difícil achar alguém que não diga ser a favor da diminuição dos infortúnios no trabalho, seja entre empresas, sindicatos, nas instituições estatais, ou mesmo no público em geral.
Todavia, esse senso comum em relação ao combate aos acidentes de trabalho não tem tido impacto na redução dos infortúnios.
Com o objetivo de identificar e problematizar fatores que explicam a perpetuação do adoecimento e dos óbitos no mundo do trabalho, foi organizado o livro Saúde e Segurança do Trabalho na construção civil brasileira, lançado nesta segunda-feira (14), na sede do Ministério Público do Trabalho (MPT), em São Paulo. Confira o convite aqui.
O livro, sem caráter comercial, foi escrito por especialistas e integrantes do Ministério do Trabalho, MPT e Justiça do Trabalho.
Cenário
Os dados do INSS são muito subestimados, mas, ainda assim, indicam que mais de 450 trabalhadores morrem todos os anos nas obras do país. A participação da construção civil no total de acidentes fatais passou de 10,1%, em 2006, para 16,5%, em 2013. O risco de um trabalhador morrer na construção é mais do que o dobro da média do mercado de trabalho.
Em 2013, as três situações geradoras que mais mataram trabalhadores em obras foram: queda com diferença de nível, impacto oriundo de material projetado, desabamento e desmoronamento (incluindo soterramento), e os principais agentes causadores foram andaimes, plataformas, telhados, edifícios ou estruturas. São cenários para as quais há previsão na legislação trabalhista de medidas específicas para evitar a ocorrência de acidentes.
O desrespeito à legislação pelos empregadores é uma característica marcante nas relações de trabalho do país. Historicamente, também há altos níveis de descumprimento da NR 18, que versa sobre saúde e segurança do trabalho na construção.
Infelizmente, nos últimos anos, o comportamento empresarial não parece ter melhorado. Muitas irregularidades têm sido apuradas pela Fiscalização do Trabalho todos os anos.
A grande maioria dos acidentes que ocorrem na construção civil é previsível, evitável e vinculada a situações cujo combate aos riscos está normatizado.
Assim, essa elevada quantidade de acidentes de trabalho nas obras do Brasil é consequência do padrão de gestão do trabalho predominantemente predatório que impera no país. Isso significa um comportamento empresarial que tende a não respeitar qualquer limite que considere entrave à acumulação, com implicações desastrosas para a saúde e segurança dos trabalhadores.
Essa característica é também evidenciada pelo caráter pró-cíclico dos acidentes, quando o avanço da tecnologia poderia implicar a redução sistemática do adoecimento laboral. A adoção de tecnologias pelas empresas é seletiva e tende a não incluir aquelas que versam sobre segurança do trabalho. Ao contrário, as iniciativas predominantes são de resistência à incorporação de novas tecnologias mais seguras.
Nas últimas décadas, esse quadro tem sido agravado pelo avanço da terceirização do trabalho no setor. Não bastasse, está em pauta uma liberalização ainda maior dessa forma de contratação, como consta no PL 4330 aprovado na Câmara em abril deste ano. Se confirmado esse novo marco regulatório, haverá forte tendência à deterioração das condições de saúde e segurança do trabalho.
Esse quadro é facilitado por uma postura do Estado hegemonicamente conciliadora com os ilícitos praticados pelos empregadores. Infelizmente, posturas condescendentes com a ilegalidade contribuem para a reprodução das mortes no trabalho, já que nesses cenários os empregadores obtêm vantagem competitiva ao descumprir as normas.
Fiscalização
Outro importante fator para o quadro lastimável dos acidentes nas obras do país é o aniquilamento da Inspeção do Trabalho pelos sucessivos governos federais. Existem mais de 1 mil cargos de Auditor Fiscal do Trabalho vagos, de modo que hoje existem menos Auditores no país do que em 1990, quando a população empregada era muito menor. Há, ao menos, três ações civis públicas tramitando no Judiciário solicitando o preenchimento das mais de mil vagas existentes pelo governo federal.
Trata-se de um desrespeito frontal à convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) assinada pelo Brasil, que tem força de lei no país. Como os cargos já existem, o governo sequer precisa do Congresso para criar as vagas, bastando preenche-las.
Para além do tratamento dispensado pelo governo à proteção à vida dos trabalhadores no país, a não recomposição dos quadros da Fiscalização do Trabalho é contradiz os próprios termos da atual política econômica. A Inspeção do Trabalho é amplamente superavitária em termos de arrecadação, direta e indiretamente, de modo que a retórica do ajuste fiscal é, como em outros casos, claramente seletiva de acordo com os interesses em questão.
A maioria dos capítulos da Saúde e Segurança do Trabalho na construção civil brasileira toca diretamente a individualização da saúde e segurança do trabalho, questão central da regulação da integridade física da população trabalhadora. Individualizar a saúde e a segurança do trabalho é uma estratégia de defesa do atual padrão de gestão do trabalho, e busca incutir no indivíduo (no caso, o trabalhador) o foco de eventuais medidas de proteção (e a culpa pelos acidentes). Desse modo, mantém intocados os fatores relevantes que efetivamente contribuem para os acidentes, que se perpetuam.
Acreditamos que a difusão do conhecimento e o debate aberto podem colaborar para evitar que as mortes e demais lesões ao trabalhador continuem. Para isso, é necessário ser crítico e autocrítico. Se os acidentes são evitáveis, mas continuam acontecendo aos milhões, algo (ou muito) tem que mudar nos agentes e nas relações que interagem para que eles sejam gerados.
*Vitor Araújo Filgueiras é pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e pós-doutorando em Economia na UNICAMP. Auditor Fiscal do Trabalho. Integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego no Brasil”.
Fonte: Brasil de Fato