A principal consequência da MP 595 – e a mais nociva – é a possibilidade de prestação de serviço público de exploração de portos por empresas privadas sem licitação. Ele põe fim ao modelo vigente, conhecido como ‘Land Lord Port’, que tem apenas 20 anos de implantação e é praticado em todo o mundo.
Na primeira metade deste século, o PIB brasileiro cresceu em níveis próximos aos níveis mundiais. A corrente de comércio exterior brasileiro passou de US$ 100 bilhões para US$ 480 bilhões, a movimentação de contêineres elevou-se de 2 milhões para 5,3 milhões e o Brasil teve crescimento no comércio exterior maior que a China e muito maior que os Estados Unidos e Alemanha, no período 2009-2011. Como 95% do comércio exterior brasileiro se dá através dos portos, é razoável imaginar que o marco regulatório do setor tenha contribuído para esta performance. Apesar disso, surpreendentemente o país é sacudido por uma “urgência”: a imediata e radical substituição do “caótico” modelo portuário brasileiro, acusado de ser a causa de “gargalos” e responsável pelo “custo Brasil”. Esta “evidência” ocupa as manchetes dos principais jornais, as capas das grandes revistas e ganha espaços crescentes nos telejornais e rádio-jornais.
Coincidindo com o repentino alarido da mídia, o governo atua junto ao Tribunal de Contas da União para impedir o julgamento de processo TC-015.916/2009-0. A base do julgamento seria o robusto relatório da SEFID – Secretaria de Fiscalização de Desestatização e de Regulação que, consolidando anos de extensa e profunda investigação, relatório concluía pela inconstitucionalidade e ilegalidade da prestação de serviço público sem licitação pelos terminais de Cotegipe (BA), Portonave (Navegantes/SC, processo administrativo iniciado em 1999), Itapoá/SC (processo iniciado em 2004) e Embraport (Santos/SP, processo iniciado em 2000) e declarava a leniência fiscalizatória e regulatória da ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários e da SEP – Secretaria de Portos da Presidência da República. As informações da imprensa são de que o governo teria comunicado ao TCU que estaria resolvendo o problema com a edição de uma medida provisória. O TCU suspende o julgamento e o governo edita a Medida Provisória 595/2012, revogando a Lei dos Portos e legalizando atividades ilegais dos referidos terminais privados de uso misto que prestavam irregularmente serviço público sem licitação.
Editada a medida provisória, a pressão dirige-se ao Congresso Nacional. A grande mídia passa a divulgar “informações de fontes do Planalto” de que a Presidente não admitiria qualquer alteração na MP. A ministra da Casa Civil Gleisi Hoffman vai à Comissão Mista da MP e repete a cantilena apocalíptica de que o sistema portuário é caótico, está ultrapassado e precisa ser substituído por um outro, mais “moderno” e que estimule os “investimentos privados”.
O modelo vigente até a edição da MP contava com apenas 20 anos de implantação (Lei 8.630/93). É o modelo Land Lord Port, praticado em todas as economias organizadas em todos os continentes, culturas, países novos e antigos e com diferentes regimes políticos. É um modelo universal que resulta da experiência de cinco mil anos de comércio marítimo, do qual o portuário é parte. É como funcionam os principais portos do mundo, como o Porto de Rotterdam, anterior à criação da Holanda, o de Gênova, anterior à Itália, o de Hamburgo, anterior à Alemanha.
No modelo Land Lord, ao Estado cabe o planejamento estratégico, zoneamento, localização e finalidade, metas, segurança, regulação. À iniciativa privada a operação dos terminais. O seu adequado funcionamento pressupõe que o Estado cumpra sua parte. Mas, segundo o TCU, a SEP e ANTAQ atuaram no sentido de sabotar o funcionamento do modelo, ao tempo em que se mostravam candidamente complacentes com a prestação ilegal de serviço público pelos terminais privados de uso misto.
A MP elimina a distinção entre terminais privados de uso público nos portos organizados (arrendatários públicos ou privados selecionados mediante licitação) e terminais de uso privativo misto construídos por empresas públicas ou privadas dentro ou fora do porto organizado, simples autorizatários da ANTAQ. No marco regulatório revogado, os terminais portuários de uso privativo deviam ter por justificativa de implantação e operação o transporte da carga própria da empresa autorizatária, admitindo-se, no caso das áreas de uso misto, a movimentação de cargas de terceiros, em caráter eventual e subsidiário, tão somente para evitar a ociosidade na operação do terminal. Tais terminais exerciam atividade econômica: instalações de auto-serviço que serviam ao seu titular em processos de verticalização logística integrante de processos de integração produtiva. Por isso, poderiam funcionar mediante simples autorização do poder da ANTAQ.
Assim, a principal consequência da MP 595 – e a mais nociva – é a possibilidade de prestação de serviço público de exploração de portos por empresas privadas sem licitação, com contratos eternos. Logo, sem a obrigação de ofertarem serviço adequado, universal, contínuo e com modicidade tarifária, por prazo determinado e com previsão de reversão dos bens afetados em favor do porto organizado, em evidente assimetria concorrencial em relação aos terminais privados e públicos nos portos organizados, submetidos a todos estes condicionantes. É o que vinham ilegalmente fazendo os terminais privados beneficiados pela suspensão do julgamento do TCU e pela edição da MP. O terminal da Portonave, por exemplo, movimentava apenas 3% de carga própria e 97% de cargas de terceiros (serviço público) em frente ao Porto de Itajaí/SC e sob as barbas lenientes da ANTAQ e da SEP.
Ocorre que a Constituição veda a hipótese de prestação de serviço público de titularidade de União por particular sem a realização de licitação e submissão ao regime público. O artigo 21, XII, da Constituição estabelece que compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os portos marítimos, fluviais e lacustres. E o art. 175 prevê que incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Neste sentido, a MP é inconstitucional.
Do ponto de vista da eficiência do sistema portuário e da redução dos custos da movimentação portuária, a MP produzirá efeitos contrários aos preconizados pelos seus defensores. Não existirá a decantada redução de custos pela “competitividade”, em razão de uma imaginária competição entre terminais. A experiência internacional mostra que o que assegura redução de custos portuários é a escala. Por isso, os principais portos do mundo possuem não mais que três terminais. O verdadeiro escopo da MP é o comércio de contêineres. Quem define o tamanho do navio e o terminal a ser utilizado na carga e descarga de contêineres são os donos dos navios, conforme a demanda e o calado dos portos numa rota comercial. A demanda é resultado do nível da atividade econômica. Calado depende de dragagem. Nada a ver com uma imaginária competição entre terminais.
Os armadores são os grandes beneficiários desta MP, já que são eles e não os usuários que escolhem os terminais onde irão atracar. As dez maiores empresas de navegação do mundo são responsáveis por 70% do comércio marítimo. Na realidade, são os armadores que recebem a remuneração dos exportadores e importadores e pagam aos operadores pela movimentação portuária. Normalmente, repassam 50% a 60% do valor recebido pela movimentação. O restante incorporam à remuneração global da operação (frete). Ao vincularem-se a portos privados não submetidos ao regime de prestação de serviço público e diante do enfraquecimento dos portos públicos, os armadores poderão camuflar preços das operações portuárias, simulando reduções de custos e aumentando a gritaria contra o “custo Brasil” e a “ineficiência dos portos públicos”. Em seguida, destruídos os portos públicos e dominado o mercado, imporão suas condições para o transporte marítimo, controlando a logística portuária e reduzindo a competitividade dos produtos industriais brasileiros no comércio internacional. Simples assim.
Outros aspectos poderiam ser objeto de análise, como o regime de trabalho dos portuários e a centralização das decisões de investimentos dos portos organizados no nível federal, mas a exiguidade do espaço e a gravidade dos efeitos da privatização e da desnacionalização dos portos para a economia e a soberania nos levam a privilegiar os aspectos destacados. Este artigo é escrito antes da votação da MP 595 pela Câmara e pelo Senado. Nossa esperança é a de que, pelo bem do Brasil, ela seja rejeitada ou, quando menos, modificada substancialmente de modo a mitigar o estrago que sua edição já provoca.
* José Augusto Valente, consultor em Logística e Transporte, Diretor Executivo do Portal T1 de Logística e Transporte. Samuel Gomes, advogado, membro da REI – Rede de Especialistas Iberoamericanos em Infraestrutura e Transporte, ex-presidente da Estrada de Ferro Paraná Oeste S/A – Ferro