A PEC que altera função social da propriedade é inconstitucional?

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Proposta é criticada por juristas, urbanistas, deputados e movimentos populares de moradia

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Juristas, urbanistas, deputados e integrantes de movimentos populares entrevistados e entrevistadas pelo Brasil de Fato divergem nas razões mas são unânimes na avaliação de que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80 não pode prosperar, isto é, ser aprovada e entrar em vigor com seu teor atual por ser inconstitucional.

 

A proposição altera a definição e alonga os caminhos para a aplicação da função social da propriedade, base conceitual e jurídica das reformas agrária e urbana. Foi apresentada em 21 de maio pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL).

O texto está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na qual se decide a admissão de todas as matérias legislativas do Senado e as comissões em que elas terão seu mérito avaliado. Por definição, uma PEC visa alterar o texto constitucional, mas nem tudo que consta na Constituição Federal (CF) pode ser modificado por esse caminho. Ela tem um “núcleo imutável” que só pode ser objeto de um novo processo constituinte, em que parlamentares eleitos especialmente para esse fim discutem uma nova Carta Magna.

A PEC é subscrita por 27 senadores e senadoras – um terço da casa, o que já garante sua tramitação – de dez partidos de perfil variado. Entre eles, a presidente da CCJ, Simone Tebet (MDB-MS), e ex-governadores. A relatora na comissão será a senadora Juíza Selma (PSL-MT) – isso caso a Justiça Eleitoral reveja a cassação do seu mandato por caixa 2 e abuso econômico, o que não demoveu o pai de Flávio a condecorá-la com a Grã-Cruz da Medalha da Ordem do Rio Branco .

Com base no entendimento expresso de que a propriedade privada constitui um “bem sagrado”, a PEC modifica os artigos 182 e 186 da CF. O texto reduz as exigências para que um imóvel urbano ou rural cumpra sua função social e acrescenta procedimentos para esse enquadramento, dificultando desapropriações.

Segundo o autor, a intenção é garantir cautela na relativização do direito de propriedade, evitando “arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação” e diminuindo a discricionariedade do poder público nessa vigilância. Para os especialistas ouvidos pelo BdF, ela beneficia especuladores imobiliários, donos de latifúndios improdutivos, o crime organizado e milícias urbanas.

Espinha dorsal

“Entendemos que a função social já é uma cláusula pétrea”, diz a vice-diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Fernanda Carolina Costa. “Um normativo que busca garantir direitos fundamentais e não pode ser alterado, nem mesmo por uma PEC.”

Ela justifica que a propriedade privada é um direito, mas precisa de limitações, e que o interesse coletivo se sobrepõe a tal prerrogativa individual. “A função social é um eixo estruturante do direito de propriedade, e a coletividade pode ter um controle do seu cumprimento”, afirma.

São considerados cláusulas pétreas (“de pedra”) a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais. No entanto, varia no meio jurídico a interpretação sobre o grau de imutabilidade dessas pedras fundamentais.  

Costa recorda que, no Brasil, o conceito de função social remonta à Constituição de 1934, veio “ganhando corpo, ganhando contornos mais definidos” e hoje permeia diversos capítulos e artigos do texto em vigor. Segundo sua leitura, faz parte da espinha dorsal da carta magna.

“Parece que a intenção é retroceder algumas décadas, ou mesmo um século”, diz a advogada e urbanista, sublinhando que o entendimento da propriedade como bem absoluto era corrente no século 19. Ela questiona a exposição de motivos, alicerçada na prevenção de “injustiças” e abusos. “Como se não fosse abusivo alguém reter imóveis de forma especulativa [esperando valorização] quando tem pessoas dentro de palafitas. Não existe nada mais injusto do que ter famílias inteiras morando na rua.”

>>Proposta de Flávio Bolsonaro pode favorecer especulação, latifúndio e milícias<<

“O Flávio Bolsonaro trata a propriedade como um direito sagrado, enquanto nós vemos assim o direito à moradia digna, o direito à vida”, comenta a integrante da União Nacional por Moradia Popular (UNMP) Evaniza Rodrigues.

Coletividade

Para o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), a subscrição de um ou uma parlamentar a um projeto não garante fidelidade até a votação final – sem deserções, faltariam apenas 22 votos para passar no Senado. De todo modo, caso a emenda convença três quintos do Congresso Nacional e seja sancionada pelo presidente da República, é “bem provável” sua derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF), prevê.

“Toda propriedade tem que cumprir um papel que é de interesse do conjunto da sociedade”, argumenta o parlamentar. “Ela tem que ter moradia, estar ocupada, se é urbana; no meio rural tem que produzir, tem que ter a reserva legal, as matas ciliares na beira de rios e lagos, que prestam serviços ambientais. Na Constituição está muito claro que a gente não pode ter retrocesso naquilo que é garantia difusa tanto do ponto de vista social quanto ambiental.”

Coordenador da Frente Parlamentar Mista Ambientalista, ele avalia que o texto disfarça a falta de compromisso com os princípios envolvidos. O objetivo, diz, seria barrar o avanço dos movimentos por terra e moradia, e o novo entendimento inviabilizaria usos coletivistas, comunitários ou voltados à população em geral, que tiram as terras do mercado.

Fernanda Carolina Costa, do IBDU, situa a tentativa numa articulação de desconstrução geral de direitos, que prioriza aqueles de natureza individual. Ela acrescenta que outras iniciativas já criam insegurança jurídica – algumas são alvo de ações diretas de inconstitucionalidade – e que possivelmente essa é a intenção.

Desproporção

Na visão do coordenador da pós-graduação em Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Luiz Guilherme Arcaro Conci, a PEC foi pensada para romper o pacto jurídico estabelecido entre proprietários e trabalhadores desde o início do século passado, que impôs condicionantes aos valores que compõem a concepção liberal do Estado, instituindo deveres para os proprietários.

“A Constituição não proíbe alteração de cláusulas pétreas”, ressalva. “Proíbe a supressão delas. A Constituição não proíbe, em momento algum, restringir direitos petrificados. Isso ocorre reiteradamente. Mas é como se eles tivessem um núcleo, esse sim intangível.”

De acordo com o constitucionalista, é inegável que o dispositivo afrouxa a vigilância sobre o cumprimento da função social. “A questão é: foi longe demais?”, pondera. “Efetivamente, o modo como ela está descrita dificulta demais o cumprimento de alguns direitos – ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, artístico e cultural, à moradia.”

Conci conclui que o texto protege demais a propriedade em detrimento dessas dimensões. “Há violação do princípio da proporcionalidade. Aí, sim, entendo que não poderia prosperar.”    

O docente observa que não advoga nem dispõe de dados empíricos sobre as disputas nos tribunais estaduais, nos quais as questões em xeque reverberam mais diretamente. “Mas nas instâncias superiores não vejo os excessos afirmados. Não vejo essas cortes como despreocupadas com a propriedade privada, muito pelo contrário”, testemunha.

Evaniza Rodrigues constata que é muito raro o Judiciário fazer valer a lógica social nos conflitos fundiários, mas destaca a importância da ferramenta para a luta pela reforma urbana, lembrando que muitos planos diretores incorporaram instrumentos do Estatuto da Cidade como o imposto predial territorial urbano (IPTU) progressivo no tempo. De forma semelhante, Fernanda Carolina Costa diz que a aplicação é “muito tímida”, porém elogia a existência dos instrumentos. Nilto Tatto reforça a leitura de que os juízes tendem a dar ganho de causa aos proprietários – daí a frequência das ordens de reintegração de posse –, mas celebra a exigência constitucional de cumprimento da função social como uma “conquista do povo brasileiro”.

 

Fonte: Brasil de Fato / Edição: Pedro Ribeiro Nogueira