“A PEC 55 precisa ser submetida a um referendo popular”, defende economista e professora da UFRJ, Esther Dweck

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Em segundo turno, a Proposta de Emenda à Constituição 55 (PEC) foi aprovada com o voto favorável de 53 senadores. Apenas 16 votaram pela rejeição. A medida será promulgada e irá cortar investimentos públicos por 20 anos no Brasil. De acordo com uma pesquisa Datafolha realizada com 2.828 pessoas, entre os dias 7 e 8 de dezembro, 60% dos brasileiros são contrários ao projeto. Apenas 24% se mostraram favoráveis, 4% se disseram indiferentes e 12% não souberam responder. Nessa entrevista à Fisenge, a economista Esther Dweck desmonta as teses defendidas pelo governo federal e aponta alternativas ao atual período econômico de baixo crescimento. Esther também é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi secretária de Orçamento Federal, vinculada ao Ministério do Planejamento. Uma das profissões mais afetadas em períodos de crise econômica é a engenharia, que será agravada com a PEC 55.

 

Fisenge: Afinal, quais serão os efeitos da PEC 55?

Esther: A PEC 55 tem sido apresentada como uma solução para os problemas do Brasil. Mas, na verdade, ela é uma mudança muito forte na nossa Constituição, no nosso regime fiscal e na nossa forma de lidar com a política fiscal. A PEC irá definir a política que será usada nos próximos vinte anos, independentemente de quem seja eleito. E qual é a essa regra? Que os gastos primários da União – saúde, educação, previdência, servidores, todos os demais benefícios sociais – não possam crescer além da inflação do ano anterior, mesmo que o PIB cresça. A despesa não poderá acompanhar um possível crescimento e ficará travada apenas pela inflação do ano anterior. E isso vai impor uma queda forte do tamanho das despesas primárias em relação ao PIB [Produto Interno Bruto]. A PEC 55 não trata de arrecadação e nem das despesas financeiras, que são os juros. Trata exclusivamente das despesas primárias, para impor uma queda dessas despesas em relação ao PIB, que é a renda gerada na economia.

Fisenge: Qual é o problema da constitucionalização de uma política fiscal?

Esther: O primeiro é que nunca ninguém fez. Os poucos países que fizeram, o fizeram com uma regra geral, inclusive com cláusulas de escape. Ou seja, em determinadas situações, a regra poderá ser alterada. No Brasil, a mudança é feita por uma regra constitucionalizada por 20 anos e menos de 5% das regras fiscais do mundo são constitucionalizadas. Na prática, o que estão fazendo é definir qual vai ser o crescimento das despesas em 20 anos, que é o não crescimento. Isso significa que só acompanha a inflação, mas não cresce, não acompanha a receita e nem o PIB, independentemente de quem seja eleito, o que acaba travando a possibilidade de atuação do governo no ciclo econômico. E ainda impõe que, a cada ano, haja um corte. Esse é o problema de ser constitucional. Para mudar isso, precisa de um quórum qualificado. Não é uma maioria apenas, são necessários três quintos dos parlamentares nas duas casas, aprovando em dois turnos, algo extremamente difícil. E o que é pior: ao tornar constitucional, você criminaliza qualquer possibilidade de mudança. Quem não conseguir cumprir, acabará com sanções muito graves, que estão impostas na própria PEC. Uma das sanções é a impossibilidade de aumento real do salário mínimo.

Fisenge: Hoje, a engenharia está no olho do furacão na Lava Jato e é um dos principais alvos da atual crise política. Há o desmonte da engenharia nacional, com demissões, desindustrialização e falta de investimento. Quais são as consequências desse cenário?

Esther: Os efeitos da desaceleração econômica estão sendo ampliados pela forma como o combate à corrupção está sendo implementado no Brasil, com impactos fortes sobre os empregados das empresas investigadas. Os dirigentes que, enfim, se fizeram alguma coisa errada devem ser punidos, mas precisamos encontrar uma forma de preservar as atividades econômicas. Os efeitos sobre os empregados, ou seja, os engenheiros que trabalham nas empresas estão sendo devastadores. Além disso, a própria desaceleração econômica tem um impacto muito forte nos engenheiros, porque eles são o motor da economia. Quando a economia está crescendo, a demanda por engenheiros é enorme. Não foi à toa que a gente viu que, quando a economia passou a crescer com uma taxa relativamente sólida, tivemos, pela primeira vez depois de anos, mais estudantes interessados por engenharia do que pelo direito, que era a carreira no Brasil que mais cresce. Não estavam faltando engenheiros e, de fato, havia mercado de trabalho. O que acontece é que a PEC vai afetar muito a engenharia. Por duas coisas: uma porque ela é uma política recessiva, que contribui para uma queda do crescimento econômico. Segundo, porque quando você faz ajustes fiscais, o primeiro setor a ser afetado é o investimento. E, principalmente, investimento em construção e em infraestrutura, que é exatamente o que demanda muito dos engenheiros. Temos uma gama de engenheiros no setor público, que estão associados diretamente ou indiretamente, que acabam perdendo muito com esses efeitos de cortes de despesas e de investimentos em períodos de baixo crescimento e de um ajuste fiscal permanente que a PEC vai impor nos próximos vinte anos.

Fisenge: O ajuste fiscal é justificado pela diminuição de gastos, mas, por outro lado, o corte é em investimento público. Que disputas de narrativas a gente vê em relação à PEC 55?

Esther: Qual a narrativa apresentada por quem defende a PEC 55? São duas ideias principais. Uma delas é de que o Brasil enfrenta a maior crise da sua história. E que é uma crise é fiscal, decorrente de uma gastança. De fato, houve uma piora no resultado primário do governo, que é a diferença entre as receitas e as despesas primárias e um aumento muito forte da dívida. A explicação apresentada pelo governo, para esses resultados, é de que se deve a uma gastança que teria ocorrido nos últimos anos. Portanto, a única forma de resolver, na visão do governo, seria cortando as despesas e fazendo essa PEC por 20 anos. E quais são os problemas dessa narrativa? Primeiro, é falaciosa e há vários erros. Vimos que, nos últimos anos, o gasto público federal teve o menor crescimento real desde 1995, quando houve estabilização da inflação. Tivemos o menor crescimento real nesse período, nos últimos 4/5 anos – principalmente nos últimos dois. Inclusive, no ano passado teve queda real dos gastos públicos federais. Não houve essa gastança. Na verdade é o contrário. O que houve foi uma queda na arrecadação muito forte. Por que essa arrecadação caiu? Em parte, por conta das desonerações que foram dadas, mas principalmente decorrente da desaceleração econômica. Então, a causalidade vai da queda do crescimento econômico para uma piora da arrecadação e uma piora no resultado primário. Portanto, para resolver, tínhamos que começar resolvendo o problema do crescimento. A maneira como é apresentado é como se estivesse invertido. A lógica apresentada é que deveria atacar o fiscal, e não o crescimento. No entanto, observando os dados, percebemos que, na realidade, não foi isso que aconteceu. Foi a desaceleração econômica que piorou a arrecadação. Em 2014, havia um déficit, relativamente pequeno comparado a maior parte dos países do mundo. Em 2015, houve um forte corte de despesas. Em vez de uma melhora do resultado primário, vimos uma piora do resultado primário, porque ficamos presos ao que chamamos de um círculo vicioso: os cortes de despesas, somados a outros elementos da economia brasileira que estavam puxando para uma piora do crescimento, reduziram cada vez mais a arrecadação e o resultado primário piorou. Cortar mais despesas, conforme a PEC imporá, não vai resolver o problema. Ao contrário. Só vai só acentuar esse círculo vicioso de, cada vez mais, a gente tentar cortar despesas, piorar a arrecadação e continuar com um resultado fiscal ruim.

Fisenge: Qual a relação entre a queda do PIB e a previdência?

Esther: Essa vai ser uma das coisas mais importantes na narrativa da PEC. Temos um problema conjuntural, que é um problema que está acontecendo em um momento na economia. Não é um problema estrutural, em que a economia está com um problema e precisa ser realmente atacado. Qual foi o problema conjuntural dessa desaceleração econômica? Fruto de vários fatores. Não foi o resultado fiscal que levou à queda do crescimento. Foram outros fatores, internacionais e nacionais também. Questões internas de seca e também a própria maneira de como o combate à corrupção foi feito que, em vez de prender só os dirigentes, puniram as empresas e os empregados dessas empresas. O primeiro efeito da queda do PIB – do ponto de vista fiscal – é a queda da arrecadação, diminuindo toda a arrecadação federal, estadual e municipal também. Não é à toa que os estados e os municípios também estão com problemas graves. No caso da previdência, reduz ainda mais a receita, porque é associada ao mercado de trabalho. Então, a desaceleração econômica com o aumento do desemprego gera uma queda de arrecadação da previdência. Por outro lado, a despesa da previdência tem um crescimento vegetativo. Basicamente, cresce na mesma taxa há anos, que é em torno de 3 a 4% em termos reais. Quando o PIB desacelera, a previdência mantém o crescimento e, assim, a relação entre a despesa previdenciária e o PIB aumenta fortemente. Quando tínhamos um crescimento econômico mais sólido, que foi de 2004 até 2011/2012, houve uma queda do peso da previdência no PIB. Isso porque a previdência continuou crescendo 3%, enquanto o PIB estava crescendo, em média, quase 4%. O PIB crescia mais rápido do que a previdência. Agora inverteu e há uma queda da arrecadação, com um suposto aumento do gasto que, na verdade, não foi um aumento do crescimento, mas só em relação ao PIB. As pessoas estão usando isso pra dizer que há um problema gravíssimo. E o que é pior? É que ainda que você pudesse discutir uma questão demográfica sobre a previdência, a PEC não se trata de questão demográfica. A PEC vai exigir uma reforma na previdência com impacto nos próximos 10 anos. Isso significa ter que fazer uma mudança na previdência que vai pegar quem iria se aposentar nos próximos 10 anos. É por isso que o discurso da idade mínima aparece fortemente. Empurram a ideia de idade mínima e vai valer, inclusive, pra quem hoje já contribui para previdência e para quem já tem anos de contribuição. É muito séria a maneira como estão usando uma situação conjuntural para propor uma mudança estrutural no Brasil.

Fisenge: Porque que as pessoas que estão próximas da aposentadoria devem se preocupar com essa PEC?

Esther: A PEC impõe um teto que cai a cada ano. Enquanto as receitas e as despesas estão crescendo em termos reais, o teto da despesa vai cair a cada ano. E, por outro lado, a previdência, se não tiver uma mexida, irá crescer muito mais que a inflação. Essa taxa de 3 a 4% acima da inflação vai continuar. Isso significa que, se o teto está caindo e a previdência está aumentando, uma hora os demais gastos serão, necessariamente, achatados. Há um estudo do Bradesco que mostrou isso, que a previdência passaria de 8% do PIB para quase 10% nos próximos 10 anos, se não houver reforma da previdência. Enfim, não conheço exatamente como eles fizeram esse cálculo, mas o que levaria o resto dos gastos a mudar de 12% hoje para 5%. Ou seja, teríamos que cortar 7 pontos do PIB nos demais gastos. Quem são os demais gastos? Todos os demais benefícios sociais, educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, parte pessoal, servidores públicos, por exemplo. O que o Bradesco conclui? Só tem uma maneira da PEC funcionar: se tiver reforma da previdência com impacto nos próximos 10 anos. Portanto, essa reforma da previdência não é pra quem vai se aposentar daqui a 20/30 anos, que está entrando agora no mercado de trabalho, porque não teria efeito algum no período da PEC. Para ser uma reforma na previdência que ocorra nos próximos 10 anos, precisa afetar quem estava a se aposentar nos próximos 10 anos, que será impedido de se aposentar na idade prevista hoje.

Fisenge: Você falou que em alguns anos a dívida pública foi muito maior. Por que não houve alteração na dívida?

Esther: Falar sobre a dívida é importante, porque passam a ideia de que o Brasil está quebrado. E essa afirmação não é verdadeira. Ao contrário, esse discurso só serve para amedrontar as pessoas e elas acharem: “O Brasil está quebrado e agora eu preciso fazer alguma coisa urgente. Tenho que aceitar qualquer sacrifício para tirar o país dessa situação”. E por que o Brasil não está quebrado? Primeiro, porque o aumento recente da dívida tem uma razão muito específica. Não foi o gasto público primário que cresceu. Portanto, o gasto primário, que é onde a PEC está mexendo, não fez aumentar a dívida. A dívida aumentou pelo gasto com juros, porque teve uma explosão no ano passado, praticamente dobrou o pagamento de juros em relação ao PIB. Esse ano, o pagamento de juros já está caindo. O que fez aumentar a dívida no ano passado não foi o resultado primário, que é a despesa primária menos as receitas primárias. O aumento da dívida é resultado de uma explosão, por conta do aumento do pagamento de juros, mas a solução apresentada na PEC não mexe no pagamento de juros. A PEC mexe só nas despesas primárias, que não só caíram no ano passado, como mesmo a diferença entre a despesa e a receita não explica nem 10% do aumento da dívida. A discussão que precisamos enfrentar é o motivo pelo qual os juros são tão altos no Brasil. Ainda assim, o Brasil não está quebrado. Já tivemos aumentos da dívida muito maiores do que a gente tem agora e o Brasil nunca quebrou. Na década de 1990 até 2003, tivemos aumento sistemático da dívida e o Brasil não estava quebrado. O aumento que a gente teve agora é muito inferior ao passado.
Além disso, quando comparamos à década de 1990, agora em 2015/2016, temos reservas cambiais que não tínhamos em outros tempos e isso tem impacto na dívida. Há fatores importantes para economia que têm um impacto na dívida que não existiam lá em 2002. Tivemos um crescimento na dívida inferior ao que aconteceu na década de 1990, por causas que nada têm a ver com gasto primário. Isso aconteceu em outros países: na crise de 2008/2009, quase todos tiveram aumentos muito fortes da dívida. Depois de um tempo, quando a economia foi se recuperando, a dívida voltou a cair ou, pelo menos, estabilizou. E é o que vai acontecer no Brasil. A gente tende a ter um aumento da dívida ainda nos próximos anos, porque estamos com o crescimento muito baixo e ainda temos juros muito altos. Em pouco tempo, quando a economia se recuperar, a dívida vai se estabilizar, como em outros anos. De 2003 a 2014, houve queda da dívida, praticamente em todos os anos. Essa situação, no Brasil, não mudou tanto de 2014 para agora. De novo: isso é uma questão muito conjuntural que não significa que o país esteja quebrado. Há causas muito evidentes e fáceis de resolver e os fatores que causaram o aumento do endividamento nada a ver com o alvo da PEC.

Fisenge: Quais as alternativas para enfrentarmos essa crise econômica?

Esther: Essa pergunta é importantíssima. Existem alternativas a seguir. Estão tentando vender como se fosse: “olha, população: o Brasil está quebrado. Infelizmente, vocês vão ter que aceitar, porque, apesar de ser um remédio amargo, vai levar a uma queda do desemprego e ao aumento do crescimento econômico. Tudo vai se resolver.” Isso não vai acontecer. É importante entender que a gente está em uma situação grave e que a primeira coisa que precisamos fazer é propor medidas para reformar o crescimento. Essas medidas passam, necessariamente, por um papel mais ativo do setor público, o que será impossível com a PEC. As famílias estão com o desemprego crescente e a renda caindo. As empresas estão com capacidade ociosa enorme, sem motivação para aumentar a produção ou muito menos investir. Neste momento, o único agente econômico que pode proporcionar uma aceleração do crescimento é o próprio setor público. Com a PEC, há impedimento de intervenção agora e em qualquer ano nos próximos 20 anos. E é gravíssimo. O mais prudente e assertivo a fazer agora são medidas emergenciais de retomada do crescimento, que recuperariam a nossa arrecadação. Também precisamos fazer uma mudança na nossa arrecadação, cobrando imposto de quem não paga, que são as pessoas que mais ganham. O Brasil tem uma estrutura tributária muito regressiva, ou seja, quem paga mais imposto é quem ganha menos. Quando a lógica deveria ser solidária, de que quem ganha mais, paga mais. Se voltássemos a cobrar alguns impostos que deixaram de ser cobrados em 1995 – que eram justamente dessas pessoas que ganham mais – já recuperaríamos bastante a nossa capacidade de intervir e já melhoraria o resultado fiscal. Além de abrir mais espaço para que o setor público pudesse intervir e promover a aceleração do crescimento econômico. Com a PEC aprovada, o que está sendo proposto por uma parte dos senadores é um referendo. Se a PEC é tão boa como o governo diz, submeta, então, à população. Uma vez a PEC aprovada, haverá uma queda anual dos gastos públicos, que vai impor uma série de medidas para conter os gastos públicos e, provavelmente, a população não vai ter acesso ao Congresso para fazer o seu lobby e garantir os seus benefícios sociais. Quem acaba tendo acesso é uma parte muito reduzida e privilegiada. É fundamental que a população possa dizer se quer ou não essa medida. Vamos submeter a uma votação popular. A medida revoga parte dos direitos sociais da Constituição de 1988. Existem alternativas. Entre elas, a primeira seria o aumento na capacidade de investimento do setor público de investir e também recuperar um pouco a capacidade de arrecadação por meio de tributação de quem não paga. É imprescindível a redução da taxa de juros. Se a inflação está caindo, já convergindo para o centro da meta, há espaço para redução do juros. Mas, o que estamos vendo, mesmo com a economia despencando, o Banco Central está aumentando os juros reais nesse momento. Com uma série de medidas para recuperar o crescimento, a arrecadação e a capacidade do setor público de investimento, o Brasil sairia do círculo vicioso para um círculo virtuoso. A PEC precisa ser submetida a um referendo popular.

Entrevista por Camila Marins (jornalista Fisenge)

Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil (EBC)