A Medida Provisória da Liberdade Econômica (MP 881/19) e suas consequências para o planejamento das cidades

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No dia 1º de maio, o presidente Jair Bolsonaro realizou o clássico pronunciamento em comemoração ao dia do trabalho. No entanto, ao contrário de seus predecessores, que buscavam enaltecer os direitos e as conquistas trabalhistas, bem como o papel do emprego no desenvolvimento do país, o presidente em exercício fez a apresentação pública da Medida Provisória nº 881/19, assinada no dia anterior.

A referida MP, denominada pelo presidente como “Medida Provisória da Liberdade Econômica”, traz uma série de perigosas flexibilizações e construções jurídicas no sentido de um retorno ao paradigma liberal até então considerado superado pelo movimento de constitucionalização de todo o ordenamento jurídico, inaugurado pela Constituição Federal de 1988. No presente artigo, pretende-se realizar uma abordagem inicial, ainda que de forma sintética, sobre as disposições passíveis de causar impactos na esfera urbana.

Antes de ingressar nos dispositivos propriamente ditos, cabe destacar que a MP adota péssimas redação e técnica legislativas. A péssima redação pode ser constatada por qualquer leitor minimamente atento. São diversos os dispositivos truncados e de interpretação duvidosa. Por sua vez, a técnica legislativa peca desde a ordenação da MP até a previsão de dispositivos flagrantemente inconstitucionais.

Estes aspectos podem ser interpretados como indicativos da incompetência, mesmo da equipe técnica, do governo; bem como do seu açodamento em realizar mudanças radicais literalmente a partir de canetadas, sem estudos prévios e construção técnica que permitam sequer a adequação mínima de tais mudanças à ordem jurídica em vigor.

Em termos claros, parece que o governo tem muita pressa e pouca competência, técnica e política, para cumprir a agenda da coalizão de interesses que o elegeu e que agora cobra retorno de seu investimento.

Superadas as observações formais, o primeiro ponto a ser destacado se refere à inclusão de um princípio da “intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas”, até então inexistente no ordenamento jurídico nacional. Trata-se do reconhecimento, sem pudores, de uma pauta liberal, apenas possível no cenário social e político distópico da atualidade.

Além disso, demonstra uma clara contradição entre discurso e prática do governo, na medida em que pretende introduzir um princípio de intervenção mínima por meio de uma intervenção máxima, como pode ser considerada a edição de uma Medida Provisória, herança do período ditatorial e de caráter nitidamente autoritário, ao permitir que o chefe do executivo produza leis de aplicação imediata, sem o crivo anterior do poder legislativo.

Outro aspecto que deve ser abordado, ainda que não se destine especificamente à esfera urbana, mas com claro impacto nesta, são os dispositivos que limitam ou vedam determinadas “liberdades econômicas”, como aquelas que descumpram normas ambientais ou de direito de vizinhança. Dentre estes dispositivos, não há consideração de qualquer norma ou princípio urbanístico como limitador, entrando neste rol apenas direitos privados como os de vizinhança e aqueles relativos ao meio ambiente.

Trata-se de grave retrocesso, considerando o avanço até então alcançado na ordenação urbana por normas nacionais de regulação, como o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), e o desenvolvimento local de regulações em atendimento a especificidades de cada cidade, que agora têm sua importância reduzida ao não serem mais previstas como de observância necessária nos casos de atividades econômicas.

Outro ponto de relevância diz respeito à vinculação de órgãos e entidades da administração pública a decisões administrativas análogas anteriores (art. 3º, § 4º). Esta previsão, que também apresenta constitucionalidade duvidosa, leva a um engessamento da administração, que, especificamente na esfera urbana, pode resultar em um descompasso entre as decisões administrativas e a realidade urbanística, sempre em mutação.

A falta de acompanhamento das mutações urbanas pelos órgãos e entidades administrativas já se revela um problema na atualidade, que tende a se agravar a partir deste dispositivo, que, cabe relembrar, é de observância obrigatória por todos os entes federativos.

Merece destaque, ainda, a disposição do artigo 1º, § 1º, que afirma que os dispositivos da MP deverão ser observados na interpretação e aplicação de diversos ramos do direito, inclusive o direito urbanístico – que abarca boa parte da regulação legal urbana no país – e a ordenação pública – que abarca regulações administrativas relativas à esfera urbana.

Este dispositivo impõe um dever de observância do conteúdo da referida MP aos aplicadores do direito (juízes, gestores públicos, órgãos administrativos), e é complementado pelo artigo 1º, § 3º, que estende este dever de observância às três esferas federativas – União, estados e municípios.

Esta última previsão, embora de constitucionalidade duvidosa, demonstra uma pretensão de universalização do conteúdo da MP, que, como visto, passa pela desregulamentação de estruturas jurídicas e administrativas de controle das atividades econômicas, bem como pelo retorno expresso a um paradigma liberal nas relações entre o Estado e os entes privados.

Outro ponto que merece atenção é a liberação de licença, autorização, inscrição, registro ou alvará para qualquer empreendimento de baixo risco (arts. 1º, §§ 5º e 3º, inciso I), sem que tenha a MP definido o conceito de risco utilizado, deixando esta definição para ato posterior, apesar de sua vigência imediata.

Esta lacuna, em si, já seria perigosa, inclusive em âmbito urbano, dada a extrema atenção a flexibilizações legais prestada por “empreendedores” que operam nas cidades, muitas vezes, valendo-se deste tipo de brecha legislativa. Mas ainda mais grave é a liberação de qualquer ato administrativo de autorização e fiscalização prévia de atividades econômicas, que, com parâmetro indeterminado de baixo risco, podem abranger diversos empreendimentos com impacto direto e importante no espaço urbano.

Corremos o risco de, confirmada esta MP pelo Congresso, assistir a uma situação de caos urbano, com empreendimentos surgindo sem infraestrutura adequada, medidas de prevenção e contenção de danos, entre outras, definidas exatamente a partir da avaliação prévia administrativa sobre as possibilidades de operação de determinado estabelecimento. 

Já nas disposições finais, a MP altera o Código Civil no que concerne à regulamentação dos fundos de investimento, para inserir dispositivo que determina o disciplinamento da matéria pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM. O que pode parecer algo intuitivo, dada a natureza da CVM, oculta a transferência da regulação de um ator que ganha cada vez mais importância, inclusive na dinâmica urbana, para a esfera administrativa, que não responde ao crivo democrático e não alcança o mesmo nível de publicidade de suas normas em relação à regulação legal.

Com isso, parece que estamos diante de mais uma medida que favorece a fração capitalista ligada ao mercado financeiro, que entende o espaço urbano como uma fronteira de acumulação de capital, real ou fictício, e que prefere operar com maior liberdade para direcionar suas operações, o que vai ao encontro da mudança de esfera regulatória da legal para a administrativa. Cabe destacar que os fundos de investimento, notadamente os imobiliários, são um dos principais atores atuantes nos processos atuais de (re)construção das cidades, de forma consolidada em diversos países e crescente no Brasil.

A partir da breve análise acima proposta, percebe-se que a MP, apresentada em rede nacional no dia do trabalho como um estímulo à economia, traz alterações importantes e perigosas sob a perspectiva progressista instituída pela Constituição de 1988. Trata-se de prever, em ato com força de lei, a intervenção mínima do Estado; de desregulamentar todo um sistema de controle de atividades econômicas que, apesar das eventuais falhas, tem um caráter de preservação da ordenação dos mercados e das cidades; e de favorecer frações capitalistas que claramente participaram ativamente dos esforços para a eleição do atual presidente.

Para além de ficarmos atentos a estas Medidas Provisórias lançadas em série e que aparentam ter se constituído na forma principal de governo, visto a ainda largamente insuficiente articulação entre os poderes executivo e legislativo, este caso específico, pela gravidade de suas alterações, parece nos exigir uma atuação proativa no sentido de impedir sua confirmação no Congresso Nacional. Frear o descaramento da agenda liberalizante do atual governo pode ser questão de sobrevivência dos marcos fundantes de nosso Estado: a promoção dos direitos sociais, a igualdade e a justiça, conforme previstos no preâmbulo do nosso texto constitucional.

Por Tarcyla Fidalgo Ribeiro, pesquisadora Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro