Confira o capítulo anterior da série de reportagens: https://www.senge-pr.org.br/2025/10/08/privatizacoes-do-setor-eletrico-a-reestruturacao-institucional/
Quando o Brasil iniciou a privatização do setor elétrico, o discurso era de que se tratava de abrir o mercado, diversificar investidores e reduzir o “peso do Estado”. Mas, passadas duas décadas, uma nova pergunta ecoa: estamos trocando o monopólio estatal brasileiro pelo monopólio estrangeiro?
O capital externo sempre esteve presente no setor elétrico nacional. Foi assim no início, com a canadense Light e a norte-americana Amforp controlando a eletricidade em São Paulo e no Rio de Janeiro no começo do século XX. Foi também assim nos anos 1990, quando grupos espanhóis e portugueses entraram nos leilões de privatização. O que mudou mais recentemente é a escala e a origem desses recursos.
A ascensão chinesa
Segundo levantamento da FGV, em 2018, 55% do capital utilizado em fusões e aquisições no setor elétrico brasileiro era de origem chinesa. Apenas 18% era de capital nacional.
Empresas como a China Three Gorges, a State Grid e a SPIC se tornaram protagonistas em geração, transmissão e distribuição. A Three Gorges, por exemplo, é a maior acionista da EDP (Energias de Portugal), que controla concessões relevantes no Brasil. A State Grid, por sua vez, construiu e opera linhas de transmissão que conectam Belo Monte ao Sudeste.
O avanço foi tão rápido que países como Estados Unidos, Austrália e Reino Unido passaram a adotar restrições ou mecanismos de controle sobre a compra de ativos considerados estratégicos. No Brasil, porém, o movimento foi recebido quase sem resistência, sob o argumento de que “capital não tem nacionalidade”.
As distorções de competição
A presença estrangeira, por si só, não seria um problema se houvesse isonomia de competição. O que preocupa especialistas é que muitas dessas empresas têm acesso a crédito barato, subsidiado pelos governos de seus países de origem. Assim, conseguem oferecer lances mais agressivos nos leilões brasileiros, deixando companhias nacionais em desvantagem.
Na prática, isso significa que um leilão que deveria premiar eficiência acaba premiando quem tem o “governo mais generoso” por trás. E quando essas empresas vencem, podem usar a concessão não apenas para atender consumidores brasileiros, mas também para alavancar cadeias produtivas do país de origem — comprando equipamentos, tecnologia e serviços de seus próprios conglomerados.
O impacto para trabalhadores e consumidores
Para os trabalhadores, o avanço estrangeiro trouxe novos desafios. O centro de decisão muitas vezes fica fora do Brasil, o que dificulta negociações coletivas e cria distanciamento em relação às demandas locais. Estratégias de corte de custos ou mudanças de política empresarial podem ser decididas em Pequim, Lisboa ou Madri, sem diálogo com sindicatos brasileiros.
Para os consumidores, a questão é de soberania tarifária. Quem garante que, em um momento de crise, as decisões tomadas por uma estatal chinesa ou europeia terão como prioridade o interesse dos brasileiros? Essa dúvida é legítima e alimenta o debate sobre se setores estratégicos, como energia, devem ou não ter limites à participação de capital estrangeiro.
O dilema regulatório
O Brasil, até agora, optou por não criar barreiras explícitas à entrada de estrangeiros no setor elétrico. A regulação foca na qualidade do serviço, nos investimentos obrigatórios e na modicidade tarifária. Mas especialistas alertam que essa postura pode ser ingênua.
Como defendem Gesner Oliveira e Pedro Henrique França, da FGV, “é preciso aprimorar o marco regulatório para assegurar uma privatização segura e em benefício do investimento e da qualidade dos serviços”. Sem isso, corremos o risco de comprometer a sustentabilidade do setor.
O fio condutor histórico
A história parece se repetir. No início do século XX, dependíamos da Light e da Amforp. Nos anos 1960, nacionalizamos o setor e criamos a Eletrobras para reduzir essa dependência. Nos anos 1990, privatizamos acreditando no mercado competitivo. E, nos anos 2010 e 2020, assistimos ao crescimento de novos monopólios, desta vez sob comando estrangeiro.
Esse fio condutor mostra que o debate não é apenas sobre eficiência ou tarifas. É sobre soberania energética: quem controla os ativos que garantem a luz nas casas e o funcionamento da indústria brasileira?
Um debate que permanece em aberto
O Brasil precisa decidir se continuará permitindo a participação estrangeira sem limites ou se adotará mecanismos semelhantes aos de outros países, que protegem ativos estratégicos sem impedir investimentos.
O dilema está posto: queremos um setor elétrico competitivo e moderno, mas não podemos abrir mão da segurança e da autonomia nacional. O desafio do futuro é equilibrar esses elementos. Se não o fizermos, corremos o risco de repetir erros do passado — trocando um monopólio por outro, apenas com bandeira diferente.
Confira o próximo capítulo da série em breve!
📌 Referências – Capítulo 5
- Oliveira, G. & França, P.H. É preciso isonomia competitiva nas privatizações do setor elétrico. Boletim Energético, FGV, 2019.
- Teixeira, R.E.B. Privatização no Setor Elétrico: um estudo dos ganhos de produtividade. PUC-Rio, 2011.
Fonte: Senge-PR