Confira o segundo capítulo da série de reportagens: https://www.senge-pr.org.br/2025/09/05/privatizacoes-do-setor-eletrico-o-brasil-no-contexto-latino-americano-licoes-da-argentina-mexico-e-chile/
O processo de privatização do setor elétrico brasileiro não foi apenas um movimento econômico. Foi, acima de tudo, um embate de narrativas. De um lado, autoridades governamentais e economistas defendiam que só a iniciativa privada poderia trazer eficiência e novos investimentos. De outro, sindicatos, trabalhadores e acadêmicos alertavam para os riscos sociais e para a perda de soberania em um setor estratégico. Esse conflito de discursos atravessou a década de 1990 e ecoa até hoje.
O discurso da “eficiência”:
Na lógica dos defensores, a equação era simples: o Estado estava falido, incapaz de investir, e as estatais acumulavam dívidas bilionárias. A privatização era apresentada por eles como única saída possível.
Economistas ligados ao governo Fernando Henrique Cardoso sustentavam que a abertura ao capital privado permitiria modernizar as empresas e melhorar o serviço. Francisco Gomide, então diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional, escreveu em 1995: “A privatização do setor elétrico, embora bem-vinda, está longe de ser a solução mágica para todos os nossos problemas. Não é a natureza do capital estatal ou privado que assegura ou não o suprimento, a qualidade de serviços e os preços adequados de energia elétrica”.
Estudos posteriores confirmaram parte desse otimismo. Pesquisas empíricas mostraram que, após a privatização, houve redução dos indicadores DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção), sugerindo melhora da qualidade do fornecimento em várias distribuidoras.
Além disso, a teoria econômica da governança corporativa reforçava a ideia de que empresas privadas teriam maior incentivo à eficiência do que as estatais, já que precisariam responder diretamente a acionistas e ao mercado.
O alerta: tarifas, empregos e soberania
Se para os economistas a privatização representava eficiência, para os críticos ela significava perdas sociais. Em abril de 1995, o físico Luiz Pinguelli Rosa, professor da UFRJ e referência nacional no debate energético, publicou na Folha de São Paulo um alerta contundente: “Com a privatização, a tarifa aumentará, se ativos amortizados já pagos pelo consumidor forem revalorizados na venda”.
E de fato, muitos consumidores sentiram no bolso. Em diversas regiões, as tarifas subiram acima da inflação, enquanto as empresas recém-privatizadas buscavam recuperar rapidamente os investimentos feitos nos leilões.
Para os trabalhadores, o processo foi ainda mais duro. As empresas privadas promoveram demissões em massa, reduziram benefícios e ampliaram a terceirização. A estabilidade que caracterizava a carreira no setor elétrico deu lugar à insegurança. Um eletricitário da época relatou em assembleia: “A sensação é de que não somos mais parte de um projeto de nação, mas apenas números em uma planilha de corte de custos”.
Sindicatos reagiram com greves e protestos. Em maio de 1995, a CUT mobilizou petroleiros, eletricitários, telefonistas e funcionários públicos em defesa do monopólio estatal. A paralisação foi uma das maiores da década, sinalizando que o setor elétrico não era apenas um ativo econômico: era símbolo de soberania.
A voz das ruas e o sentimento de perda
A privatização também afetou o imaginário popular. Durante décadas, empresas como a Eletropaulo e a CEEE eram vistas como patrimônio público regional. Vender essas companhias significava, para muitos, entregar parte da identidade coletiva a grupos privados, muitas vezes estrangeiros.
Nas entrevistas da época, trabalhadores falavam em “venda do futuro de nossos filhos”. Consumidores temiam que os interesses locais fossem substituídos por estratégias de lucro rápido. Essa percepção de perda de controle coletivo ajudou a consolidar uma visão crítica, mesmo em meio aos ganhos técnicos de eficiência.
O choque entre teoria e prática
O embate de narrativas mostra que privatização não pode ser reduzida a uma questão de eficiência. Para cada indicador de qualidade que melhorava, havia uma família demitida ou uma conta de luz mais cara. Para cada discurso de modernização, havia o sentimento de que o Brasil abria mão de sua capacidade de planejamento de longo prazo.
Como destacou Ennes (1995), “não foi estabelecido um modelo que atenda simultaneamente aos interesses dos consumidores, dos atuais detentores das concessões e dos potenciais investidores”. A frase sintetiza bem o dilema: a privatização atendeu ao caixa do governo e aos investidores, mas deixou consumidores e trabalhadores em segundo plano.
Um debate ainda em aberto
Mais de duas décadas depois, os argumentos continuam vivos. Defensores apontam que, sem o capital privado, o país não teria conseguido expandir o sistema e reduzir interrupções. Críticos lembram que o preço social foi alto demais e que a modicidade tarifária, prevista na Constituição, foi comprometida.
O embate de narrativas não terminou nos anos 1990. Ele se atualiza a cada leilão, a cada tentativa de privatizar estatais estratégicas, a cada discussão sobre a entrada de capital estrangeiro. E mostra que, no setor elétrico, a disputa não é apenas técnica: é política, social e profundamente humana.
Confira o próximo capítulo: https://www.senge-pr.org.br/2025/10/08/privatizacoes-do-setor-eletrico-a-reestruturacao-institucional/
📌 Referências – Capítulo 3
- Aquino, R.M.M. et al. Os Benefícios da Privatização: Evidência no Setor Elétrico Brasileiro. RCO/USP, 2007.
- Ennes, S.A.W. Privatização do Setor Elétrico: de volta ao futuro ou um passo para o passado? RAE/FGV, 1995.
- Teixeira, R.E.B. Privatização no Setor Elétrico: um estudo dos ganhos de produtividade. PUC-Rio, 2011.
Fonte: Senge-PR