Os serviços de saneamento básico integram, segundo a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, os Direitos Humanos. A resolução 64/292 da ONU é de 2010 e há proposta para internalizá-la na constituição brasileira. Mas, antes disso, o país já buscava caminhos para combater o problema.
Em 2007, no início do segundo governo Lula, foi aprovada a Lei 11.445, conhecida como o Marco Legal do Saneamento Básico. O texto definia as responsabilidades dos diversos níveis de governo na prestação dos serviços essenciais que abrangem as quatro atividades do setor: abastecimento de água para consumo, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos. Tornando prioritária a prestação dos serviços, a lei estabelecia a criação do Plano Nacional de Saneamento Básico, com diretrizes para guiar os esforços de estados e municípios no setor.
No contexto do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, sob forte lobby da iniciativa privada no sentido de ampliar sua presença no setor, o marco regulatório foi ‘atualizado’ com a aprovação da Lei 14.026, sancionada por Bolsonaro em julho de 2020. As metas estabelecidas pelo novo texto são ambiciosas e, até então, pouco críveis. A universalização dos serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto até 2033 não vem dando sinais de avanços.
“O prazo imposto pela Lei 14.026 é demagógico. Para que fosse cumprido, precisaríamos estar em uma outra conjuntura de distribuição de renda, emprego e de arcabouço fiscal. Teríamos que colocar recursos para avançar na reforma social, que permitiria uma mudança no panorama na maneira de morar da população brasileira, com um outro nível de desenvolvimento”, aponta Marcos Helano Montenegro, membro da coordenação do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e ex-diretor da Secretaria Nacional de Saneamento, do Ministério das Cidades.
Entrevistado do programa Soberania em Debate de 18 de julho, Montenegro destaca que, se o “novo” Marco do Saneamento não avança de fato no combate ao problema que alcança 25,3% da população brasileira, ele tem sido bastante útil para a aceleração da entrega do setor à iniciativa privada. “O prazo de 2033 foi usado fundamentalmente como arma contra as companhias estaduais de saneamento que, em um quadro de restrição fiscal, torna extremamente difícil conseguir os empréstimos necessários, coisa que o setor privado não enfrenta”, aponta Marcos.
Avanço das privatizações
Não é difícil entender a fome do setor privado pela área do saneamento. Concessionárias prestam os serviços em sistema de monopólio, com clientes cativos e receita garantida, uma vez que ninguém pode prescindir da água e todos geram esgoto. Por meio de concessões ordinárias ou Parcerias Público-Privadas, as empresas têm garantia de lucro por três décadas, prazo que costuma constar nos contratos que transferem do Poder Público para concessionárias privadas a gestão de direitos dos cidadãos.
“O avanço da iniciativa privada, a transformação de atividades do Estado em atividades mercantis, infelizmente, é uma característica do momento da economia capitalista que vivemos. E, hoje, temos no caso da água e do esgoto, uma atuação extremamente importante do BNDES na consolidação e modelagem das concessões. Um banco público e que, do governo Bolsonaro para cá, não mudou sua atuação nessa área”, lamenta Montenegro.
O domínio ideológico daqueles que pensam a prestação dos serviços já alcançou tal ponto que, segundo o professor, as empresas estaduais e municipais nem mesmo são consideradas quando são realizados os estudos de viabilidade técnica e econômica para a universalização da água e esgoto. “Há um pressuposto de que são ativos que devem ser vendidos à iniciativa privada para melhorar o cofre dos estados e municípios. No Rio de Janeiro, parte dos recursos recebidos pela venda da Cedae foi para a última campanha estadual, financiando cabos eleitorais. E, infelizmente, o BNDES ainda não reviu sua posição e segue apoiando governadores e prefeitos que entendem que o caminho é por aí”, alerta o engenheiro civil e mestre em engenharia urbana pela Escola Politécnica da USP.
Fiscalização e resistência
Onde a privatização ainda não avançou, ela precisa ser barrada. Para Marcos, é preciso uma administração atenta e comprometida com os problemas do saneamento, que faça o possível para garantir o acesso ao serviço aos mais vulneráveis nas cidades e nas áreas rurais.
“Nos municípios que os serviços já estão privatizados, é essencial que o Poder Público ajude a população a se organizar e cobrar, transformando a atividade de controle social em ferramenta efetiva, seja do ponto de vista da qualidade do serviço, quanto dos investimentos para a expansão do mesmo para todos. Exemplos como o da Inglaterra mostraram que os investimentos acordados não foram realizados, mas foram usados para pagar dividendos aos acionistas e remunerar executivos com salários altíssimos. Privatização é sinônimo de aumento das tarifas, diminuição dos esforços de proteção dos mananciais, demissões e aumento de tarifas para maximizar lucros”, finalizou.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
Fonte: Senge RJ
Foto: Canva, TV Brasil e Tomaz Silva/Agência Brasil