Dez anos após a deflagração da Operação Lava Jato, o setor da construção pesada ainda pena para se recuperar do baque sofrido com as medidas tomadas pela força-tarefa. As investigações tratavam de atos de corrupção em contratos com a Petrobras, mas ao longo do tempo a condução do caso descumpriu normas do devido processo legal. Conforme também foi salientado por juristas do Brasil e do exterior, a operação criou obstáculos ao direito de defesa de acusados. Foram fatores, que associados a uma legislação mais dura contra as pessoas jurídicas, provocaram a quebra de uma verdadeira indústria e a demissão em massa de trabalhadores.
Sob o rótulo de “combate à corrupção”, a Lava Jato usou como tática a prisão dos envolvidos como forma de forçá-los a assinarem delações premiadas. Além do abuso no uso de conduções coercitivas, a força-tarefa mantinha os suspeitos em prisão preventiva ou temporária por longo tempo, com o intuito de levá-los a delatarem supostos mandantes. Não é à toa que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes declarou que na operação “usava-se a prisão provisória como elemento de tortura”. Além dessa coerção ilegítima, ao longo do tempo verificou-se que grande parte dessas delações não continham provas ou eram até falsas.
A tática ajudou muitos réus a se livrarem rapidamente da pena de reclusão, mas foi dura com relação aos trabalhadores das empreiteiras, que não tiveram qualquer envolvimento com propinas, e foram sumariamente demitidos com o banimento de suas empresas de concorrências e com o endividamento provocado. Empregos indiretos também foram sacrificados. De acordo com um estudo realizado pelo Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (Corecon -RJ), as maiores construtoras do país – Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia, UTC e Constran – tiveram uma redução de 85% de suas receitas no período entre 2015 e 2018. O total do faturamento delas passou de R$ 71 bilhões para apenas R$ 10,8 bilhões.
Nos quatro anos após o início da Lava Jato, o setor fechou um milhão de empregos. O número tem embutido o reflexo da crise econômica, mas segundo o Corecon-RJ, 40% dessas perdas foram devidas à quebradeira provocada pelos desmandos do suposto combate à corrupção. No período, a OAS, por exemplo, reduziu seu quadro de 127 mil empregados para apenas 19 mil. Entre 2015 e 2019, a Obebrecht reduziu o número de empregados e terceirizados de 276 mil para menos de 50 mil colaboradores.
Mas ao enfraquecer um setor estratégico para a economia como o da construção pesada, a Lava Jato causou danos muito mais profundos. Segundo um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), ela foi responsável pelo fechamento de 4,4 milhões de postos de trabalho e gerou uma redução do Produto Interno Bruto (PIB) de 3,6%. Além das empreiteiras, o setor de óleo e gás também foi duramente afetado, bem como outros, como o naval. Só a Petrobras teria deixado de investir entre 2015 e 2017 cerca de R$ 104 bilhões.
Em nome da suposta moralidade, a operação foi responsável pela paralisação de obras importantes de infraestrutura no país inteiro. Além de ter atingido drasticamente a receita e o fluxo de caixa das empreiteiras, os trabalhos foram interrompidos antes mesmo da comprovação de irregularidade. Um exemplo é o da Linha 4 do Metrô do Rio de Janeiro, estado onde instalou-se uma ramificação da força-tarefa. A construção da estação da Gávea está parada desde 2015, o que segundo especialistas gera risco de desabamento dos terrenos ao redor. O buraco está cheio de água como forma de prevenção. Angra 3, o Comperj e a expansão da refinaria de Abreu e Lima (PE) também estão na lista.
Segundo o ranking da revista “O Empreiteiro”, em dez anos, o faturamento das cem maiores empresas do ramo da construção pesada no país caiu de R$ 138 bilhões (2013) para R$ 56 bilhões (2022), um baque de cerca de 60%. As envolvidas na operação ou recorreram a processos de recuperação judicial ou foram simplesmente à falência.
Mas o golpe contra a engenharia nacional também foi perpetrado através de pesados acordos de leniência assinados junto à Controladoria Geral da União (CGU). Amordaçadas por medidas judiciais arbitrárias e sem poderem exercer o pleno direito de defesa, as construtoras foram forçadas a concordar com a aplicação de multas desproporcionais, cujo pagamento ficou inviável após o banimento das licitações. Algumas foram reabilitadas para participarem de concorrências púbicas, mas as dívidas geraram um estrangulamento financeiro que dificulta assumirem grandes projetos.
A antiga Odebrecht (atual Novonor) assinou acordo em 2018 para o pagamento de R$ 2,7 bilhões, mas só conseguiu arcar com R$ 172 milhões até o momento e tenta renegociar a dívida junto à CGU. A construtora tenta se recuperar financeiramente, mas entrou recentemente com pedido de recuperação judicial. A antiga OAS, que mudou de nome para Metha, está na segunda recuperação judicial. Sua dívida junto à CGU beira os R$ 2 bilhões.
“O Brasil perdeu um dos pilares da sua economia, que é o mercado de infraestrutura. Isso é o inverso do que prega qualquer doutrina que dá suporte à existência do acordo de leniência. O acordo, como foi previsto pelo legislador, não tem finalidade de quebrar empresa e sim de fazê-la superar os problemas, pagar e continuar a existir”, afirmou o advogado Walfrido Warde, que representa partidos políticos em ação no Supremo contra os acordos de leniência.
Os acordos de leniência são instrumentos previstos na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff. A lei criou a responsabilidade objetiva nas esferas administrativa e cível para as pessoas jurídicas. Isso significa que a Justiça Penal continua valendo para a punição de atos cometidos por pessoas físicas, como diretores, por exemplo, mas na prática foi uma forma de endurecer a pena contra as empresas. A legislação é fruto de um acordo internacional assinado pelo Brasil e tinha também como objetivo a entrada do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O país acabou não aceito na organização, mas seus países membros faturaram em muito com o suposto combate à corrupção. Os Estados Unidos, cujo Departamento de Estado interagiu diretamente com os integrantes da força-tarefa, ao arrepio da lei, estão entre eles. Conseguiram se livrar da incômoda concorrência da Odebrecht em obras de grande envergadura em toda a América Latina e em seu próprio território. Há de se lembrar que a empresa brasileira já tinha participado da expansão do Aeroporto de Miami e da construção do Estádio de Futebol Americano da Flórida.
Logo na retomada da construção do Comperj em 2017, a Petrobras só convidou empresas estrangeiras para participarem. As empresas estrangeiras foram beneficiadas também com as concessões de aeroportos, instalação de linhas de transmissão de energia e até na expansão do metrô de São Paulo. Entre elas está a Acciona, que chegou a receber R$ 6,9 bilhões do BNDES, mas se envolveu em diversos escândalos de corrupção em seu país, a Espanha.
É inegável que a corrupção é um mal que tem que ser combatido, mas dentro do Estado Democrático de Direito não se pode tentar punir uma ilegalidade praticando-se outra. Recentemente, o ministro do STF Dias Toffoli anulou todos os atos praticados contra Marcelo Odebrecht no âmbito da 13ª Vara Federal de Curitiba, ao identificar uma série de irregularidades nos processos. “O necessário combate à corrupção não autoriza o fiscal e o aplicador da lei a descumpri-la, devendo-se lamentar que esse comportamento, devidamente identificado a partir dos diálogos da Operação Spoofing, tenha desembocado em nulidade, com enormes prejuízos para o Brasil.”, declarou o ministro fazendo menção às conversas registradas entre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato.
São falas estarrecedoras trocadas por aplicativo de mensagens, que começaram a ser reveladas por reportagem do site Intercept Brasil a partir de 2019, numa série batizada de Vaja Jato. É louvável também reportagem do jornal francês Le Monde de 2021, que revelou como a operação foi orientada por interesses dos Estados Unidos.
No balanço desses dez anos, há quem aponte a adoção de novas regras de compliance pelas empresas que prestam serviços para o Estado como um avanço. Muitos também torciam legitimamente por um aumento da concorrência entre as construtoras, mas o resultado pode ter sido decepcionante. Segundo declaração do presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada-Infraestrutura (Sinicon), Claudio Medeiros, “Com a Operação Lava Jato tinha-se uma ideia de que as empresas grandes iam deixar de existir. Mas foi pior: houve uma retração completa do mercado. Pela falta de oportunidade, pela falta de investimento, tanto público quanto privado. Por isso, as empresas maiores precisaram olhar para um mercado que até então não se olhava. Um mercado de obras de valores menores, bem menores. As médias passaram a olhar para outras obras bem menores e criando uma concorrência com as pequenas que, por não terem a mesma capacidade de sobrevivência, terminaram, essas sim, fechando. O número de empresas no setor, pequenas e médias, que fecharam é enorme. Grandes empresas também fecharam e diminuíram bastante de tamanho, mas o impacto foi muito maior nas pequenas e médias. Antes, dizia-se que as pequenas empresas iriam virar as médias, as médias iriam virar as grandes, mas o que aconteceu foi ao contrário. As grandes viraram médias, as médias ficaram pequenas e as pequenas fecharam”.
Além da contratação de estrangeiras, a Petrobras, que viu no período uma drástica redução em seus investimentos, enfrenta dificuldades até de contratar no país quem construa suas plataformas. Com o desmantelamento da engenharia nacional, está difícil encontrar quem entregue dois navios-plataforma para a exploração de petróleo no Sergipe, concorrência que já foi a adiada e no último certame só teve um interessado. Nos dez anos da Lava Jato, as lições que ficam para o país é que ainda há muito o que ser feito para se fortalecer as instituições, para que a falsa bandeira do combate à corrupção não sirva de ataque à democracia e à economia nacional.
Fonte: Clube da Engenharia
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil