OS DESAFIOS DE REIVINDICAR OS DIREITOS HUMANOS À ÁGUA E AO ESGOTAMENTO SANITÁRIO EM UM CONTEXTO DE ATAQUES À DEMOCRACIA
Nos últimos anos o Brasil tem sido palco de uma série de ataques à democracia que têm gerado preocupações em âmbito nacional e internacional (MENDES, 2020). O enfraquecimento das instituições democráticas e a erosão dos direitos civis têm sido aspectos característicos desse contexto (SANTOS, 2021). As ameaças à democracia no Brasil têm se manifestado em diferentes frentes, incluindo ações governamentais dos governos passados, medidas legislativas de um Congresso majoritariamente conservador e discursos polarizadores disseminados, principalmente, nas redes sociais. Esses ataques têm sido associados por pesquisadores a um processo de radicalização política e à ascensão de forças autoritárias (ALMEIDA, 2020).
Esses ataques têm sido acompanhados por um processo de deslegitimação das instituições democráticas, fenômeno que pode ser observado em diversos episódios, como a perseguição a jornalistas e ativistas e a restrição da participação popular nos processos de tomada de decisão (OLIVEIRA, 2022). A implementação de medidas legislativas controversas, como ações que fragilizam os mecanismos de controle e equilíbrio de poder, tem contribuído para esse enfraquecimento. Além disso, discursos polarizadores e a disseminação de informações falsas (“fake news”) foram utilizados como estratégias para minar a confiança na legitimidade das eleições e no sistema democrático como um todo (SOUZA, 2021; MENDES, 2020).
O modelo democrático ocidental baseia-se na soberania popular, na separação de poderes e no respeito aos direitos individuais (SANTOS, 2009) . A manutenção desse modelo tem apresentado desafios significativos, principalmente na região da América Latina e Caribe. As políticas públicas nesses países muitas vezes enfrentam obstáculos decorrentes de estruturas políticas fragmentadas, corrupção generalizada e desigualdades socioeconômicas persistentes (GRUGEL & RIGGIROZZI, 2018). Além disso, a influência de interesses privados e grupos de poder tem afetado a formulação e implementação de políticas públicas, comprometendo a capacidade dos governos de atender às demandas e necessidades da população de forma efetiva e justa.
Esses desafios podem levar a um ambiente propício à ruptura democrática, como tem sido observado em alguns países da região recentemente (CARVALHO, 2020). A polarização política, o enfraquecimento das instituições democráticas e o surgimento de lideranças populistas têm representado riscos significativos para a estabilidade democrática. A crescente desconfiança nas instituições políticas, a disseminação de discursos autoritários e a erosão dos direitos civis e políticos também têm minado a legitimidade do sistema democrático na região (SANTOS, 2021). A ruptura democrática não apenas compromete a governança efetiva e a justiça social, mas também tem impactos negativos na economia, no desenvolvimento humano e nas relações internacionais. É fundamental fortalecer as instituições, promover a participação cidadã e combater a corrupção e as desigualdades para evitar a ruptura democrática e promover um ambiente propício para o desenvolvimento sustentável e a justiça social na região (CARVALHO, 2020).
Como contraponto ao conceito de democracia ocidental tradicional, temos o conceito de democracia substantiva, evocado por José Esteban Castro (CASTRO, 2022), que vai além da ideia tradicional de democracia como mera representação política e aborda a necessidade de garantir a participação efetiva dos cidadãos nas decisões que afetam suas vidas. Castro argumenta que a democracia não deve se limitar à escolha periódica de representantes, mas deve ser entendida como um sistema que promove a igualdade, a justiça social e a realização dos direitos humanos (GOMES, 2022).
Castro argumenta que a democracia substantiva envolve a democratização das relações sociais, a inclusão dos setores marginalizados da sociedade e a transformação das estruturas de poder. Isto implica criar espaços de participação cidadã, fortalecer a sociedade civil e promover a igualdade de oportunidades para todos (CASTRO, 2022). Além disso, o conceito de democracia substantiva busca superar as desigualdades socioeconômicas e combater as formas de opressão e exclusão presentes na sociedade, garantindo a participação e o empoderamento dos mais vulneráveis (GOMES, 2022). Nesse sentido, a democracia substantiva propõe uma abordagem mais abrangente e transformadora da democracia, buscando promover uma sociedade mais justa e igualitária.
Existe uma correlação intrínseca entre direitos humanos e democracia, uma vez que a promoção e proteção dos direitos humanos são fundamentais para o pleno funcionamento de um sistema democrático (BEETHAM, 2010). A democracia é um sistema político que busca garantir a participação igualitária dos cidadãos nas decisões públicas e a salvaguarda dos direitos individuais e coletivos. Os direitos humanos, por sua vez, são os direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, gênero, religião, orientação sexual, entre outros fatores, e são protegidos por normas internacionais e, em alguns casos, nas constituições nacionais (REHMAN, 2010).
A democracia fornece o ambiente propício para a realização dos direitos humanos, uma vez que permite a expressão livre das opiniões, a participação política, a igualdade de oportunidades e a proteção contra abusos de poder (BEETHAM, 2010). Da mesma forma, os direitos humanos fortalecem a democracia, pois asseguram a dignidade e a liberdade dos indivíduos, bem como a inclusão e a igualdade de todos perante a lei. A garantia dos direitos humanos é essencial para prevenir violações, combater a discriminação, promover a justiça social e construir sociedades mais justas e equitativas. Portanto, a associação entre direitos humanos e democracia é vital para o estabelecimento de sociedades democráticas sustentáveis, baseadas na igualdade, justiça e respeito aos direitos fundamentais de cada pessoa (BEETHAM, 2010).
Os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário são fundamentais para a garantia de uma vida digna e saudável para todos os indivíduos. De acordo com José Esteban Castro e o conceito de democracia substantiva, a realização desses direitos é essencial para a construção de uma sociedade justa e igualitária. A democratização do acesso ao saneamento básico implica a promoção da participação cidadã, a inclusão dos grupos marginalizados e a transformação das estruturas de poder (CASTRO, 2022).
Nesse contexto, a garantia dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário envolve a criação de espaços de participação popular nas decisões relacionadas a políticas públicas do setor, bem como o fortalecimento da sociedade civil para que possa influenciar e monitorar a implementação dessas políticas. Portanto, a realização dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário está intrinsecamente relacionada à democracia substantiva, que busca promover a justiça social e a participação de todos os cidadãos na definição das políticas públicas que afetam suas vidas.
A problematização de se reivindicar a implementação dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário em um ambiente conturbado pela ameaça de uma ruptura democrática é um tópico relevante de discussão, não exclusivo aos ambientes acadêmicos. Em contextos em que a democracia está ameaçada ou enfraquecida, a garantia desses direitos fundamentais torna-se ainda mais difícil de ser alcançada. A falta de respeito pelo Estado de Direito, a concentração de poder nas mãos de poucos e a ausência de instituições independentes e fortalecidas comprometem a capacidade do governo em priorizar e implementar políticas públicas voltadas para o acesso à água e ao esgotamento sanitário.
A ruptura democrática muitas vezes está associada a um ambiente político instável e polarizado, em que os direitos humanos são frequentemente desconsiderados ou violados em prol de interesses particulares (BEETHAM, 2010; SMITH, 2019). A implementação dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário requer um sistema democrático funcional, que permita a participação ativa da sociedade civil, a transparência na alocação de recursos e a prestação de contas por parte das autoridades. Portanto, em um contexto de ameaças de ruptura democrática, é necessário enfrentar os desafios políticos e institucionais para reconstruir uma base democrática sólida e garantir a proteção dos direitos humanos, incluindo o acesso ao saneamento básico.
A importância dos direitos humanos torna-se ainda mais crucial em momentos conturbados, como a pandemia da Covid-19 e eleições com a presença de atores antidemocráticos. Durante a pandemia, os direitos humanos desempenharam um papel essencial na proteção das liberdades individuais e coletivas, na promoção da igualdade de acesso à saúde e no combate à discriminação. Em um contexto de crise sanitária, é fundamental que as medidas adotadas pelo governo sejam guiadas pelos princípios dos direitos humanos, garantindo que as respostas institucionais sejam proporcionais, não discriminatórias e respeitem os princípios de dignidade humana.
Da mesma forma, em eleições marcadas pela presença de atores antidemocráticos, os direitos humanos são fundamentais para preservar a integridade do processo democrático. Os direitos à liberdade de expressão, de associação e de participação política são essenciais para assegurar eleições livres e justas. Além disso, a proteção dos direitos humanos é fundamental para combater a disseminação de discursos de ódio, desinformação e manipulação, garantindo que a vontade popular seja expressa de forma autêntica e respeitando os princípios de inclusão e igualdade. Em momentos conturbados, a defesa e promoção dos direitos humanos são fundamentais para fortalecer a democracia, proteger as liberdades individuais e coletivas e preservar os valores essenciais de justiça e igualdade.
Em conclusão, os ataques à democracia vividos no Brasil nos últimos anos, juntamente com os desafios enfrentados na manutenção do modelo democrático ocidental na América Latina e no Caribe, ressaltam a importância de se fortalecerem as instituições democráticas, promover a participação cidadã e combater as desigualdades. Nesse sentido, o conceito de democracia substantiva trazido por José Esteban Castro destaca a necessidade de democratizar as relações sociais, incluir os setores marginalizados e transformar as estruturas de poder, buscando uma sociedade mais justa e igualitária. Além disso, a associação entre direitos humanos e democracia evidencia a importância de se promover e proteger os direitos fundamentais de todos os indivíduos, especialmente em momentos conturbados, como a pandemia da Covid-19 e eleições com a presença de atores antidemocráticos.
Diante dos desafios enfrentados, é fundamental reconhecer que a garantia dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, bem como a promoção dos direitos humanos em momentos de crise democrática, exigem esforços conjuntos e abordagens abrangentes. É necessário fortalecer as instituições democráticas, combater a corrupção e promover a transparência e a participação cidadã na tomada de decisões. Além disso, é crucial promover a conscientização sobre os direitos humanos e a importância de sua implementação, tanto por parte dos governos quanto da sociedade civil. É necessário resistir às ameaças à democracia e aos ataques aos direitos humanos, levantando vozes em defesa da justiça, igualdade e dignidade de todos os indivíduos. Somente por meio do compromisso contínuo com os direitos humanos e a democracia é que poderemos superar os desafios e construir sociedades mais resilientes, inclusivas e baseadas nos princípios de justiça e igualdade.
* INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO
Privaqua é um projeto de pesquisa que objetiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.
Fonte: Davi Madureira Victral/ONDAS Brasil