O novo momento do sindicalismo brasileiro

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As últimas quatro décadas terminaram por reconfigurar a infraestrutura econômica no Brasil perante o aprofundamento do grau de dependência externa decorrido do retorno à especialização produtiva e à reprimarização exportadora. O caminho do declínio nacional se expressou pela perda da participação brasileira no PIB mundial de 3,2% alcançado em 1980 para 1,6% em 2021.

As consequências disso para a estrutura de classes e frações de classes sociais foram significativas. A pujança do novo sindicalismo[2] que se insurgira contra a opressão da ditadura civil-militar e a exploração patronal no auge da sociedade urbana e industrial do final da década de 1980 sofreu um forte revés a partir de 1990, quando o Brasil ingressou passivo e subordinadamente na globalização neoliberal.

A taxa nacional de sindicalização, superior a 30% dos ocupados ao final dos anos de 1980, decaiu para 11,2% em 2019, enquanto o número de greves ao redor de 4 mil ao ano declinou para menos de 600 em 2019. Com a reforma trabalhista de 2017, o ataque à estrutura sindical foi ainda mais forte, com a brutal contenção do acesso aos recursos necessários para o mínimo financiamento das ações do sindicalismo, restrição do acesso à justiça do trabalho e ao exercício da negociação coletiva de trabalho.

Neste panorama regressivo à classe trabalhadora e à estrutura de representação de interesses laborais, que levou a se pensar que o velho movimento sindical se recusa a morrer enquanto havia um novo para nascer, que o presente estudo pretende explorar o novo momento do sindicalismo justamente quando o Brasil se prepara para ingressar efetivamente no século 21.

O reconhecimento da existência de outro mundo do trabalho atualmente em marcha, diferente daquele próprio da sociedade industrial, descortina o horizonte da necessária reformulação da estrutura sindical, conforme avançam os entendimentos a respeito da redefinição do sindicalismo no âmbito do Ministério do Trabalho neste início do terceiro mandato do presidente Lula (2023-2026).

A RUÍNA DA SOCIEDADE URBANA E INDUSTRIAL

No momento em que o país se preparava para ingressar na Era Digital, em constituição no final do século 20, com a montagem interna da microeletrônica e o salto tecnológico e informacional posto em marcha, inclusive pela força da lei de informática e das parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional. Isso ocorreu justamente na virada dos anos de 1970 para 1980, em pleno auge da sociedade urbana e industrial, quando emergiu o novo sindicalismo que com seu impulso reordenativo e de lutas trouxe pela primeira vez na agenda política nacional a classe trabalhadora enquanto sujeito coletivo de enorme importância.

Com a rápida organização por local de trabalho e a ampliação da sindicalização, ocorreu significativa renovação na direção dos sindicatos rurais e urbanos. Ao mesmo tempo, o crescimento do número de greves e das negociações coletivas de trabalho terminaram por expressar a inédita dimensão alcançada pela organização dos interesses laborais, cujo impacto na cena política nacional foi inegável.

A crise da dívida externa e a adoção de política econômica recessiva entre os anos de 1981 e 1983 travou o ciclo de expansão produtiva, que por cerca de meio século foi responsável pela ampla modernização capitalista instalada a partir da Revolução de 1930, que havia definido, entre outras coisas, a própria estrutura sindical corporativa brasileira. A colagem do endividamento externo com a expansão da dívida pública interna herdada dos últimos governos da ditadura civil-militar (1964-1985) demarcou a base pela qual a financeirização da economia ganhou autonomia concomitante com o regime de superinflação.

Na sequência do ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal desde 1990, a queda do processo hiperinflacionário transcorreu mediante a renegociação da dívida externa e a implantação do Plano Real. Uma receita mortífera à industrialização, uma vez que a combinação de elevadas taxas de juros reais atraentes ao ingresso do capital externo que ao valorizar a moeda nacional estimulou a substituição da produção nacional por importados, sobretudo os de maior valor agregado e empregos de qualidade.

Por fim, a prevalência do tripé macroeconômico desde 1999, com taxa de câmbio flutuante e metas de superavit fiscal e de inflação, terminou por consolidar a inserção do capital externo no reino da financeirização, sustentado por elevadíssimas taxas de juros e crescente desconexão com a antiga relação periférica com os países do nortecentrista. Em realidade, o modelo econômico extrovertido, cuja dependência com o exterior, determina o dinamismo nacional alimentado por mercado interno contido e asfixiante da produção e consumo de bens industriais, cada vez mais provenientes do exterior.

O REVÉS DO NOVO SINDICALISMO

Greve 1979 – Trabalhadores em assembleia no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, em março de 1979 – Memorial da Democracia

No contexto geral de ruína da sociedade industrial, o novo sindicalismo sofreu profundo revés. Em grande medida imposto pelo desmonte das bases estruturais pelas quais o sindicalismo brasileiro emergiu e se encontrava associado desde o final do século 19 à transição do longevo e primitivo agrarismo para a moderna sociedade urbana e industrial.

Do lançamento do Manifesto Republicano, em 1870, à Revolução de 1930, foram sendo criadas as condições objetivas pelas quais o Brasil foi, com a Coreia do Sul, o país de passado colonial e periférico que, entre as décadas de 1930 e 1980, levou mais avante, ainda que tardiamente, a industrialização nacional. Mas, com o ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal a partir de 1990, o que havia de sociedade urbana e industrial constituída até então sofreu forte impacto regressivo, acompanhado por consequência do esfarelamento das bases materiais pelas quais o sindicalismo se estruturou ao longo do século 20.

Pela desindustrialização houve a reversão do ciclo econômico expansionista do passado, fazendo com que o país permanecesse aprisionado à longa fase de estagnação assentada na financeirização do estoque de riqueza velha e na volta do modelo primário exportador. Com isso, a geração de crescente população sobrante aos requisitos das atividades tipicamente capitalistas condicionou o congelamento do assalariamento e o rebaixamento do emprego protegido por direitos sociais e trabalhistas.

Também ganhou expressão a reconfiguração das atividades associadas à economia popular e de subsistência conformada por pequenos negócios e empreendedores de serviços gerais, incapazes de gerar identidade laboral e pertencimento coletivo laboral. Por serem atividades econômicas, em geral, de contida produtividade, a resistência aos direitos sociais e trabalhistas tem sido crescente, inclusive de parte dos próprios ocupados.

DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO NA ERA DIGITAL

A reversão da atual situação nacional requer pôr em curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo. Ou seja, o necessário e estratégico reposicionamento brasileiro na Divisão Internacional do Trabalho da Era Digital, superando o modelo econômico primário-exportador, dependente da impostação de bens de maior valor agregado, conteúdo tecnológico e emprego decente.

Sob a Era Digital, a Divisão Internacional do Trabalho separa dois grupos distintos de países, os que produzem e exportam bens e serviços digitais e aqueles que os consomem a partir da importação, pois praticamente quase nada produzem internamente. O Brasil faz parte do segundo grupo de países crescentemente dependente da importação, pois se constitui atualmente no quarto mercado consumidor de bens e serviços digitais do mundo.

Como subproduto do baixo dinamismo econômico, próprio das políticas liberais ou neoliberais adotadas em consonância com o ciclo de commodities, o estoque da população sobrante aos requisitos do setor privado tipicamente capitalista se tornou crescente. Nesse mesmo sentido, o precoce avanço da desindustrialização, desde 1990, refluiu o peso das classes médias assalariadas e operária industrial no conjunto das ocupações.

Ao invés do protagonismo das capitais e regiões metropolitanas situadas nas regiões litorâneas do país, assistiu-se, por exemplo, ao protagonismo modernizante das cidades médias, locus privilegiado da produção primário-exportadora. Enquanto a pujança das áreas industriais deu lugar à estagnação econômica com crescente presença de multidões sobrantes e sem destino, cada vez mais influenciadas pelo fanatismo religioso e banditismo social, parcela das cidades do interior do país consagrado pela produção primário-exportadora concentrou renda e pouco expandiu o emprego.

EXPANSÃO DE OCUPAÇÕES GERAIS E SERVIÇOS

Por outro lado, a expansão de uma legião de ocupações gerais e serviçais (seguranças, domésticos, babysitterpersonal trainer, cuidadores, motoristas, entregadores, passeadores de cães, piscineiros, entre outros). Em geral, ocupações isentas de identidade profissional e senso de pertencimento coletivo, associadas à falsa ideia de empreendedorismo e distanciamento da ação sindical.

Além disso, a prática patronal do uso de trabalho similar à escravidão se difundiu mediada por ampla parcela de trabalhadores empobrecidos, que sem ocupação e rendimento estável, se apoiou nas variadas modalidades de políticas de garantia de renda. A inclusão das massas empobrecidas no orçamento público combinada à importação de bens e serviços digitais favoreceu a modernização do padrão de consumo de bens e serviços.

Por ser dependente na maioria das vezes da importação, não da produção interna, o país passou a conviver com vazamento de renda interna para o exterior, onde o emprego de melhor qualidade era gerado na produção de bens e serviços de maior valor agregado e conteúdo tecnológico. Nos anos de 1985 a 2020, por exemplo, a população assistida por programas governamentais diversos de transferência de renda saltou de menos de 3% para cerca de 40% do total dos brasileiros.

PREPARAÇÃO DO BRASIL PARA O INGRESSO NO SÉCULO 21

A preparação para o ingresso no século 21 pressupõe a redefinição política da convergência dos capitais em torno de novo padrão de acumulação para o desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. Isso dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida pela financeirização e superexploração do trabalho resultante da atual presença brasileira na Divisão Internacional do Trabalho enquanto país primário-exportador.

A recuperação da centralidade do trabalho é fundamental, uma vez que as últimas quatro décadas foram marcadas pelo esvaziamento da relação capital-trabalho, base da atuação sindical. O novo que está provir se estabelece diante das perspectivas que se abrem neste terceiro mandato do presidente Lula, capaz de recolocar o Brasil na rota do desenvolvimento econômico com inclusão social e aprofundamento democrático.

No primeiro quarto do século 21, prevaleceu uma espécie de impasse junto ao sindicalismo brasileiro. Tanto assim que a agenda laboral permaneceu aprisionada à defesa das políticas públicas de natureza reparatória, comprometidas com a recomposição dos direitos sociais e trabalhistas destituídos pelo receituário neoliberal e com o retorno do fortalecimento do sindicalismo próprio da sociedade industrial.

Ainda que justificáveis e necessárias, as propostas de caráter reparatórias parecem insuficientes, especialmente se forem consideradas as condições estruturais e objetivas do passado, já não mais existentes na atualidade. A reparação no trabalho trata do presente do passado, o que é importante, sobretudo quando o tempo não está submetido às alterações estruturais.

TRANSIÇÃO DA ERA INDUSTRIAL PARA DIGITAL

Do contrário, como parece ocorrer atualmente pelo curso de uma mudança de época, o estratégico se volta muito mais à situação do presente do futuro, fruto de uma nova época histórica em constituição. Por isso que o novo momento sindical requer compreender melhor as exigências correspondentes à transição da Era Industrial para a Digital.

As políticas de reparação tendem a vislumbrar o horizonte de expectativas associadas à ideia da prevalência de uma mesma época histórica (Era Industrial), enquanto a realidade atual aponta para a mudança estrutural (Era Digital). Nesse contexto que se consolida o quotidiano laboral conectado a demandas próprias da inédita concepção do trabalho que emerge da Era Digital.

Deixa de fazer sentido, por exemplo, a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo, do trabalho dentro e fora da casa, entre outros, uma vez que a digitalização invadiu e contaminou as fronteiras que até então se justificavam durante a Era Industrial. As ocupações disponíveis se deslocam do eixo temporal que conecta ao horizonte de futuro melhor, libertando a forma pela qual o Brasil necessita se reposicionar diante da nova Divisão Internacional do Trabalho.

Do contrário, as possibilidades ocupacionais possíveis tendem a se limitar à difusão da precariedade e cada vez mais distante da relação capital-trabalho. O que se tem percebido é a conformação de novos sujeitos monetários que, sem acesso ao dinheiro suficiente, buscam se reproduzir como multidões desconectadas da perspectiva salarial proveniente da relação capital-trabalho. Em seu lugar ganha expressão a relação débito-crédito, compatível com às lógicas tanto tipicamente capitalista do trabalho em plataformas digitais como não capitalistas geradoras de ocupações na esfera da economia popular e de subsistência.

APARENTE AUSÊNCIA DE CLASSES SOCIAIS

Diante do custo da vida definida pela ordem urbana, cabe como estratégia de sobrevivência, a adoção de ações fundadas no crédito operado por variadas formas. Pelo rebaixamento e precarização das ocupações de natureza geral, próprias do modelo econômico primário-exportador e caracterizadas pela baixa produtividade, o avanço da flexibilização laboral tornou diversas atividades complementares, legais ou não, cada vez mais dependentes da transferência de renda pública, do endividamento, entre outras.

Nesse sentido que emerge o cenário de aparente ausência de classes sociais e frações que resulta das relações difusas de trabalho. Ao comprometerem a identidade e o pertencimento coletivo terminaram por desfavorecer a atuação das tradicionais instituições de representação de interesses próprias da sociedade industrial (associações, sindicato, partido político).

Para a nova Era Digital, o sindicalismo continua fundamental. O que havia se estruturado sob a industrialização nacional tende a encontrar limites frente a digitalização da economia e da sociedade, exigindo um reposicionamento radical do sindicalismo capaz de romper com o impasse que ainda o aprisiona ao passado, obstaculizado por disputar as tarefas do presente do futuro.

Artigo publicado originalmente pela Fundação Rosa Luxemburgo – Brasil e Paraguai
Por Marcio Pochmann[1]
Foto: Arquivo Agência Brasil

 

[1] Professor da Unicamp e autor do livro “O Sindicato tem Futuro”, editado pela Fundação Rosa Luxemburgo e pela Editora Expressão Popular.

[2] O conceito de “novo sindicalismo” tem sido utilizado no Brasil para identificar a ascensão dos sindicatos na virada dos anos de 1970/1980. Sobre isso, ver: Ricardo Antunes “O que é sindicalismo”. SP, brasiliense, 1982. Na literatura especializada estrangeira, o termo novo sindicalismo define a emergência dos sindicatos gerais, especialmente da indústria da segunda revolução tecnológica no final do século 19 para diferenciar dos sindicatos de ofício prevalecentes até então. Ver: Eric Hobsbawm Mundos do trabalho. RJ. Paz & Terra, 2015.