Durante o primeiro dia do 12 º Consenge, com patrocínio da Mútua e apoio do Crea-RJ, o economista criticou a exclusão de terceirizados, uberizados e outros trabalhadores sem proteção laboral e previdenciária das estruturas convencionais de representação
Por Verônica Couto/Senge-RJ
Para o economista Marcio Pochmann, professor da Unicamp e presidente do Instituto Lula, “uma nova era vem se abrindo no Brasil”, que vai exigir dos sindicatos um novo modelo de organização, capaz de representar a crescente população sem empregos formais, logo atualmente desprovida de proteção laboral, sindical, previdenciária, até da ideia de pertencimento. Para o movimento sindical essa transformação significa, diz ele, superar preconceitos e dar respostas aos trabalhadores terceirizados, precarizados e uberizados. Grande parte deles, alerta, capturada atualmente por estruturas ligadas às igrejas pentecostais.
O economista participou nesta sexta-feira (10/9) do 12º Congresso de Sindicatos de Engenheiros (Consenge), que vai até sábado, com atividades online e presenciais, no hotel Mirador, no Rio de Janeiro. A palestra de Pochmann, e a do assessor das centrais sindicais, Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor do Dieese, abriram os debates sobre Organização Sindical, uma das pautas do Consenge, que tem como tema “ “A engenharia, o sindicalismo, a democracia e a soberania nacional”.
Diante desse quadro de mudança de época, a ação sindical, na avaliação do economista, tem sido uma ação de defesa de direitos e conquistas, mas sem apontar alternativas. “A ação parte do diagnóstico do desmonte de direitos, que está correto, mas esse diagnóstico não se articula com o sentido geral das mudanças, e passa a ser visto como um discurso que está defendendo o passado, portanto, conservador, reacionário. Parece que não conseguimos produzir um sentido de luta, que dispute o futuro que está sendo construído”, adverte Pochmann. “O que está sendo estabelecido neste momento vai dizer o que será o Brasil nos próximos 40 anos.”
Segundo o presidente do Instituto Lula, o país vive, desde os anos 1990, a ruína da antiga sociedade urbana industrial concebida em 1930, com a extinção daquelas que eram as duas principais classes do capitalismo: a burguesia industrial e a classe operária, principalmente a industrial. Com elas, vão sendo desmontadas também as formas tradicionais de organização e representação do trabalho. E não só na indústria, que aderiu ao rentismo vendendo suas empresas e se tornando “amante dos juros altos”, ou virando comerciante, e com isso dependente da taxa de câmbio e da redução dos custos trabalhistas, portanto adversária de políticas públicas do trabalho.
O ramo financeiro, por exemplo, diz Pochmann, contava com 1 milhão de trabalhadores em 1988, sendo 850 mil deles com carteira assinada, e 150 mil terceirizados nas áreas que a legislação da época permitia, ou seja, segurança patrimonial e transporte de valores. Em 2014, antes de começar o decrescimento da economia, o mesmo setor – o que mais investimento fez em tecnologia –, tinha se expandido em 80%, para 1,8 milhão de trabalhadores. “Mas mudou a natureza da ocupação. Desse total, apenas 400 mil eram contratados diretamente como bancários; 200 mil, eram correspondentes bancários, como agências lotéricas, o que significava 800 mil trabalhadores em atividades bancárias, como consultores, etc.”
O economista avalia que houve desse processo uma leitura “iluminista, elitista, de cima para baixo” no movimento sindical, que não conseguiu entender essa “transmutação o trabalho”, e deixou passar a oportunidade de envolver politicamente, na sua representação, essa massa de trabalhadores precarizados. “A começar pelas análises da terceirização”, lembra. “Nos anos 90, o discurso da academia, dos sindicatos, partidos, dizia, e era verdade, no caso brasileiro principalmente, que a terceirização era ruim, com empregos com menos qualidade, maior jornada, mais riscos. Do ponto de vista racional, é inferior ao trabalho com carteira assinada. E esse passou a ser o nosso discurso: somos contra a terceirização.”
A questão, contudo, reconhece o economista, é que naquela época 80% dos terceirizados nunca haviam tido outro emprego na vida, não sabiam como era ter direitos. “O que dizem os trabalhadores então? Se os que querem ser meus representantes estão falando contra o meu emprego, estão fora da minha visão.”
Disputa com as igrejas e com o crime
Trazendo para os dias de hoje, Pochmann aponta a forma como os sindicatos abordam as ocupações nas plataformas – sistemas de Uber, entregadores, etc. “A gente diz – ‘somos contra’. Mas quando vamos conversar com essa massa, eles dizem: ‘ainda bem que eu tenho essa possibilidade, porque me permite uma renda. Sem isso, não temos nada.’ Fazemos a crítica mas não temos a saída. A proposta é voltar ao emprego assalariado, ao que era antes. Mas a pasta de dente já saiu do tubo, não volta mais.” Por exemplo, ele destaca que, nos últimos seis anos, 50 mil trabalhadores surdos tiraram carteira de motorista e passaram a trabalhar com Uber.
Uma classe ligada a serviços gerais, contudo, não tem pertencimento, como acontecia na indústria convencional, em que os trabalhadores sentiam-se integrados a categorias bem definidas, por exemplo, a de metalúrgico. Pochmann observa que, muitas vezes, o motorista do Uber tem uma renda baixa, à noite é segurança, no fim de semana vende produtos de embelezamento… “Faz qualquer coisa para sobreviver. Essa classe é destituída das identidades tradicionais.”
Como o movimento sindical não tem uma proposta para ela, Pochmann acredita que “essa massa trabalhadora está mais no campo na direita, que tem maior compreensão desse segmento de serviços”. Segundo ele, trata-se de uma volta a um cenário semelhante ao dos trabalhadores que sobraram à deriva no pós-abolição, sem reforma agrária nem acesso a direitos. “O fanatismo religioso, o banditismo social é que conduzem cada vez mais essa massa de trabalhadores. Ela não demanda uma instituição específica – sindicato, partido, associação de estudantes, de moradores…. Essa forma de representação perdeu funcionalidade. Essa classe de trabalhadores de serviços quer instituições que correspondam à totalidade da vida.”
E aí que entram, explica Pochmann, as igrejas pentecostais, que estão dentro das periferias, tem espaço de articulação, solidariedade, assim como a confraria do crime, operando no mesmo sentido de acolher. Enquanto isso, os sindicatos têm sede, em geral, no centro da cidade, seu discurso é racional – negocial. “As igrejas e o crime têm projeto de poder, têm planejamento, formação de quadros, partidos, financiamento. O crime organizado financia jovens que fazem Direito, para passar na OAB, entrar no Ministério Público, no aparelho do Estado. Tem bancada da bala, mas não tem bancada sindical.”
Nos anos 90, o capitalismo brasileiro respondia por 3,2% do PIB mundial, hoje, por 1,6%. E a classe operária industrial brasileira, por 4% da classe operária mundial; hoje é menos de 1,5%. “Esse vácuo da indústria foi ocupado recentemente por serviços, que dependem cada vez menos da atividade econômica, e estão mais vinculados à renda das famílias, gerando uma massa abundante de trabalho, tratada pelos governos da Nova República, de modo geral, de um lado pelo Estado Social, de outro, pelo Estado policial.”
Em 1985, o economista afirma que 2,7% da população brasileira viviam dependendo do orçamento público; em 2019, passou para 27%, incluindo previdência, seguro desemprego, até o Bolsa Família. Em 2020, passamos a ter 40% da população dependendo do orçamento público. Em 2020, a despesa pública agregada, incluindo União, estados e municípios, foi de 45% do PIB. Nunca na história do país o Estado foi tão grande, a despeito de dizerem que o Estado pratica o austericídio, a austeridade fiscal. É o maior gasto público da história. E no ano passado, tivemos o maior déficit público da República, de 13% [do PIB].
Esse deslocamento do perfil do trabalho e o vácuo de representação constituem uma questão chave, ressalta o economista. “Estamos vivendo um período singular da história, como a luta dos abolicionistas, dos tenentistas… Um momento de mudanças fundamentais. Grandiosas possibilidades que o Brasil tem de dar um passo magnífico. O momento é de enorme facilidade para organização, precisamos de uma mudança de visão.”