A lógica aplicada pelas empresas públicas hoje que fornecem saneamento básico no país, chamada subsídio cruzado, é a seguinte: por entender o direito à água e o serviço de esgoto como essenciais para a saúde e encarar isso como política pública, utiliza o dinheiro arrecadado de municípios que dão lucro para investir naqueles menos rentáveis. É uma questão de garantia do serviço. No entanto, com as mudanças legais em curso, será incentivado que tudo isso passe para as mãos de empresas privadas. “E como se dará a redistribuição de recursos passa a ser uma incógnita”, alerta o professor-pesquisador da Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Alexandre Pessoa.
No dia 4 de agosto ocorrerá a última audiência pública virtual, a terceira de um processo de consulta pública, sobre a transferência de concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de fornecimento de água e esgotamento sanitário e dos serviços complementares de 64 municípios do estado do Rio de Janeiro. O que está sendo discutido é o projeto desenvolvido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) que propõe como se dará o modelo de privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). Ainda no mês de julho, no dia 15, foi sancionada pelo presidente da República a lei 14026/20, que estabelece mudanças no Marco Regulatório do Saneamento Básico em todo o país. Na opinião de especialistas ouvidos pela reportagem, ambos os movimentos, feitos em plena pandemia, tiveram o mesmo modus operandi:: foco no estímulo à privatização na prestação do serviço, em consequência o ataque à universalização do saneamento e, por fim, a baixa participação popular.
Para Alexandre Pessoa, o projeto em discussão no Rio de Janeiro é um laboratório de ensaio para o que virá a acontecer em todo o Brasil. “Estamos diante de um processo que coloca em risco o direito humano à água, ao esgotamento sanitário e, consequentemente, à saúde pública. Essas consultas públicas têm um erro de origem porque começaram em plena pandemia, não permitindo que a população pudesse ter o direito a uma participação efetiva. Isso se expressa mais ainda em audiências públicas que são virtuais, que por si só já limitam a participação justamente das populações mais vulnerabilizadas, que serão as mais impactadas”, avalia o pesquisador.
Pessoa sinaliza isso porque a concessão do abastecimento de água e esgotamento sanitário ao setor privado, apesar de ter como força motriz o pagamento das dívidas do estado em uma negociação com o Governo Federal que vem desde 2017, faz parte de um conjunto de privatizações em curso que se intensifica com a aprovação da atualização do novo marco. E, entre os desdobramentos dessa nova legislação, aponta o pesquisador, está o fim dos contratos de programa, que permitem o subsídio cruzado citado na abertura desta matéria, o que acaba permitindo a criação de monopólio privado, uma vez que, pela natureza do serviço, após implantado não tem concorrência de fornecimento. E isso impacta na universalização do acesso à água e esgoto principalmente em locais mais periféricos, como a zona rural, pequenos municípios e a população de baixa renda que encontrará dificuldades para pagar tarifas elevadas. Esta foi a terceira tentativa do governo de aprovar mudanças na lei vigente. Em 2018, duas medidas provisórias sobre o tema (844/18 e 868/18) foram enviadas, mas perderam a vigência sem serem votadas pelo Congresso.
No entanto, como apresenta o presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge) e da coordenação do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), Clovis Nascimento essa pressão por atualização do marco regulatório nacional não tem explicação a não ser implantar a privatização do serviço. “Nós temos uma lei de 2007 [lei nº 11.445], que estabelece diretrizes para o saneamento básico e que, do ponto de vista histórico, é novíssima. E temos ainda o Plano Nacional do Saneamento Básico (Plansab), que é de 2013. O que realmente precisamos é colocar na prática o que nossa legislação diz, como, por exemplo, concluir a implementação do Plansab, porque ele define as diretrizes para atingir a universalização dos serviços de água e de esgotamento sanitário no Brasil. O que essa lei aprovada quer é acabar com garantias essenciais para o povo brasileiro, que é a possibilidade de universalização, que nunca alcançamos. Ela infringe ainda a Constituição quando, por exemplo, cassa a titularidade municipal”, avalia.
Com esse novo marco, aponta Clóvis, o Brasil vai na contramão do que se tem feito no mundo todo, já que países como França e Alemanha fizeram a remunicipalização dos serviços historicamente privados. Argentina, Bolívia e Uruguai, por exemplo, oferecem a prestação de serviços por meio de empresas públicas. Reino Unido e Chile estão com o debate em curso na perspectiva de voltar à gestão pública, por conta da onda de descontentamento da população. Fazendo um recorte mais nacional, estados como Tocantins e a cidade de Manaus, que têm seus serviços privatizados, trazem dados não animadores com a experiência recente, segundo Clóvis. “Manaus está um caos na cobertura e no acesso ao serviço e o estado de Tocantins, que também teve o serviço privatizado, acabou de receber de volta 78 municípios que eram deficitários. A história mostra como será daqui para frente se esse modelo se repetir”, afirma.
Marco e desdobramentos
Para André Monteiro, pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz, a atualização da lei nacional provoca uma ruptura no modelo de prestação de serviços e rompe com a solidariedade entre os entes federados (estados e municípios). “Esses processos passarão a ser via concorrência para a concessão de novos serviços. Desde 2016 estamos vivendo um processo do ‘vire-se quem puder’ para as necessidades essenciais para a população. No atual governo, isso chegou a níveis insuportáveis de uma radicalização da privatização de serviços e o saneamento entrou nessa agenda. Essa lei se insere dentro de um projeto político extemporâneo, num contexto de uma pandemia, em que vários países têm se posicionado de maneira a revalorizar o papel protetivo do Estado”, avalia.
Outro fator que ele chama a atenção é que essa lei pode ser um primeiro passo para o que ele chama de ‘espoliação das águas’. “Quando falamos sobre a privatização dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário, olhamos a partir da detenção desses serviços. E a questão da água permeia esse processo. Isso pode acontecer e é importante dar visibilidade a esse risco. Não à toa, o senador Tarso Jereissate liderou o processo de aprovação do novo marco e é o representante da Coca-Cola no país”, relembra.
Clóvis Nascimento chama a atenção ainda para o fato de o saneamento ser considerado monopólio natural e que isso passará a ser privado. “Quem ganhar a licitação vira monopolista no dia seguinte. Isso seria monitorado pela Agência Nacional de Águas (ANA), que tem toda a expertise no desenvolvimento da lei 9433/97, a lei de recursos hídricos, que atua nas bacias hidrográficas, mas não tem nenhuma expertise na regulação em saneamento. Isso, em médio prazo, pode ser criado? Claro que pode, sem nenhuma dúvida, mas vai depender de investimento de dinheiro e de tempo. É importante reportar que a história das agências reguladoras brasileiras é muito triste. Se a gente examinar o papel delas atualmente, deveriam defender o povo brasileiro, mas elas estão a serviço das empresas privadas, infelizmente’, reflete.
Uma parte do todo: o caso Cedae
Para os especialistas, o Rio de Janeiro está servindo de exemplo para a pressão da privatização das demais empresas estaduais brasileiras. De acordo com André Monteiro, o BNDES está usando de modelagem esse processo com a Cedae. “A partir do desenho que esse marco traz e essa iniciativa do BNDES haverá um ruptura do modelo das companhias estaduais, uma fragmentação na gestão dos serviços”, explica.
Alexandre Pessoa, ao avaliar o projeto apresentado pelo BNDES, indica que não fica claro como será feito o saneamento em comunidades mais pobres. “Ele estabelece um plano de ação a ser desenvolvido, mas não detalha como será referente às áreas irregulares, que corresponde às favelas e aos aglomerados subnormais. Não apresenta nenhum detalhamento, nenhum termo de referência, nenhuma diretriz de como será feito esse plano de ação”, avalia e completa: “O documento informa que nessas áreas haverá alinhamento entre o estado, a concessionária e a agência reguladora para decidir em quais áreas deverão receber investimento, devendo ser atendidas por parte das concessionárias as áreas que atendam aos requisitos de urbanização e com condições de segurança”, indica.
Para Pessoa, esse trecho deixa claro que as áreas a serem exploradas pelas novas concessionárias será o de rentabilidade no lugar de ser de universalização do acesso ao saneamento. “As áreas que já estão pavimentadas, que já são urbanizadas e com mais segurança terão seu serviço garantido. Já as demais áreas ficarão sob avaliação de viabilidade. Nesse sentido, é naturalizada a questão da insegurança pública, ratifica as iniquidades sociais porque, na perspectiva da epidemiologia, são exatamente as áreas mais vulneráveis, que têm pouca urbanização, que deveriam ser priorizadas porque elas são insalubres. Isso se torna uma violência de Estado, a legitimação de uma violência, associada ao argumento de falta de proteção, de insegurança pública, eu entendo que esses critérios poderão postergar as áreas mais críticas ou mesmo impedir a sua universalização, criando desertos sanitários”, conclui.
O pesquisador acredita ainda que há um problema técnico grave de engenharia sanitária e ambiental, que é a proposta de “coletor de tempo seco”, que é a utilização de galerias pluviais, que recolhem as águas das chuvas, para receber os esgotos sanitários. Na Região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro, a população já questiona o sistema de coletor de tempo seco, que está sendo proposto pelo BNDES para regiões do município do Rio e para Belford Roxo, Itaboraí, São Gonçalo, Nova Iguaçu, como espinha dorsal do modelo nos primeiros cinco anos. “Pode ser bom na Europa, mas quero falar da chuva no Rio de Janeiro”, compara Pessoa, que explica: “Quando chover forte, não terá estação de tratamento que segurará. O esgoto vai transbordar. E isso está previsto sem o devido estudo de concepção e nem memorial justificativo. O próprio processo de privatização para viabilidade econômica e financeira, para sua rentabilidade e lucratividade, acaba pondo concepções, matrizes tecnológica, projetos de engenharia que não necessariamente as mais adequadas na perspectiva da saúde pública. No Brasil, o esgoto sanitário legalmente deve correr em tubulações próprias para estações de tratamento, separado das águas de chuva. Isso foi implementado no país no início do século 20 pelo patrono da engenharia sanitária, Saturnino de Brito, por compreender a realidade do país e os índices pluviométricos de um país tropical”, relembra.
O problema do coletor de tempo seco é que, ao jogar esgoto na galeria, os rios continuarão a ser poluídos, explica Clovis, da Fisenge. “No sistema chamado de separador absoluto, que a Cedae adota atualmente, as redes de esgoto se conectam a uma estação de tratamento, o que reduz em 95% a carga orgânica da água, antes de ser devolvida aos chamados corpos hídricos como rios, mananciais, mar, etc. No coletor de tempo seco, os esgotos das galerias pluviais vão ter que passar por fora da estação, ou sobrecarregar e sobressair durante o período de chuva, caindo direto nas águas.”
Para Pessoa, essa nova forma de esgotamento traz uma série de problemas operacionais de risco à saúde pública. “Diante das grandes inundações que ocorrem, que vêm ampliando a sua intensidade e recorrência no estado do Rio de Janeiro, pode provocar a interconexão entre esgoto e água de chuva e, em consequência, grande contaminação das condições hídricas, mostrando que esse sistema não cumpre a função de barreira sanitária. Então, se utiliza essa tecnologia com a justificativa de agilidade como uma solução provisória e, – quem conhece a história sanitária no Rio de Janeiro sabe que as obras são eternamente provisórias. Portanto, devemos seguir outros caminhos, como, por exemplo, defender o óbvio, que é o sistema separador absoluto, defender o saneamento enquanto direito humano e ,enquanto política pública, e defender a indissociabilidade do saneamento e da saúde”, afirma.
Ainda sob a perspectiva da saúde, Pessoa aponta que o caderno de encargos, documento a ser avaliado nas audiências públicas, cita a palavra saúde apenas oito vezes, sendo que em sete se refere ao Ministério. “Para mim, é o exemplo de que os documentos não incorporam na sua metodologia a estratégia de saúde pública e, consequentemente, esse objetivo está suspenso. E que a redação deixa clara? Que o objetivo é padronizar, uniformizar práticas de condutas da operação de água e esgoto, de a maneira de alcançar metas de atendimento e performance estabelecidas, bem como boas práticas na engenharia, administração comercial, financeira e socioambiental. Perceba, a saúde está implicitamente no socioambiental, mas pode também não estar. Então, os próprios objetivos explicitados no caderno de encargos apresentam uma linguagem corporativa de rentabilidade, e não de saúde”, questiona.
Manifestações técnicas
No dia 29 de julho, O Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental/DSSA, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/ENSP, da Fundação Oswaldo Cruz/Fiocruz publicou uma nota técnica sobre a consulta pública da privatização da Cedae. Entre os apontamentos da nota estão críticas ao modelo de concessão, de proteção dos mananciais e de universalização dos aglomerados subnormais.
“Os modelos de blocos e de planos de negócios apresentados pelo BNDES reproduzem, sem a devida adequação à área de saneamento, os modelos de privatização de infraestrutura que foram utilizados nas concessões de rodovias e de aeroportos. Frequentemente, essas concessões apresentam desequilíbrio econômico-financeiro, estão sendo revertidas e/ou prestando serviço inadequado (tarifa/qualidade). A lógica desse tipo de modelagem de serviço público era compensar financeiramente serviços deficitários e superavitários para atender a decisões políticas, além de criar o ingresso de receita nos poderes concedentes famintos. Ressalta-se que na modelagem do processo da Cedae existem obscuridades e ilegalidades que serão judicializadas, gerando enorme insegurança jurídica, perpassando desde a questão constitucional da titularidade até a legitimidade para participação no processo. Algumas dessas violações já foram levantadas na ação civil pública proposta pela Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro”, diz um trecho do documento.
Publicado no início do mês de julho, o documento ‘Contribuição ao conteúdo do Edital de Concessão dos Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário do Estado do Rio de Janeiro’, elaborado por pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também traz uma série de questionamentos e pedidos de esclarecimentos ao projeto apresentado. “A lógica de condução dos propósitos do Edital, baseada, primeiramente, na fixação de metas e sem o devido rebatimento da influência dos investimentos sobre o espaço físico físico-territorial traz vício e erro da lógica que, em geral, conduz à elaboração de Planos Municipais de Saneamento Básico. São documentos de planejamento desprovidos de conteúdo de engenharia com a qualidade e detalhamento que o objeto requer e que se estruturam, meramente, com base na proposição e no acompanhamento de índices e indicadores. Como consequência, não explicitam o que fazer, onde, quando e por quanto. Apesar do caráter impositivo, metas fixadas não terminam em si mesmas. Precisam ser confirmadas a partir de um plano criterioso de hierarquização dos investimentos e do entendimento de quando serão alcançadas a partir do que precisa ser feito por um determinado valor em algum lugar”, questiona.
Fonte: Viviane Tavares – EPSJV/Fiocruz
Foto: Arquivo Agência Brasil