Nos jornais tradicionais, marisqueiras, pescadores(as), quilombolas e outras comunidades tradicionais afetadas pela tragédia não têm voz
Quase um mês após o aparecimento das primeiras manchas de óleo no litoral nordestino é que o tema ganhou alguma menção na mídia nacional. Nos três jornais impressos de maior audiência do país, O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, a tragédia só foi anunciada no dia 26 de setembro, embora, segundo o Ibama, o primeiro registro de contaminação no litoral nordestino tenha ocorrido no dia 30 de agosto, no litoral da Paraíba.
Analisando as coberturas dos jornais impressos de 2 de setembro a 10 de outubro deste ano a partir das palavras-chave: óleo e nordeste, duas coisas chamam atenção, além da demora em noticiar o fato: a falta de diversidade nas fontes ouvidas, o que culmina na repetição à exaustão de determinados pontos de vista e hipóteses, e a ausência quase absoluta de aspas daqueles(as) mais diretamente afetados(as) pelo vazamento, os povos do mar, que certamente são as fontes mais autorizadas a falar sobre o assunto.
A pesquisa identificou a publicação de 30 textos neste período, sendo 29 notícias e 1 artigo de opinião, onde são ouvidos: ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, presidente Jair Bolsonaro, Marinha do Brasil, ICMBIO, Ibama, órgãos estaduais de Meio Ambiente, Petrobras, pesquisadores da UFBA, UFRJ, UFPE, UERJ, USP, Projeto Tamar, WWF Brasil, ministro de Minas e Energia, Associação Brasileira de Indústrias de Turismo, Capitania dos Portos, para citar apenas os mais recorrentes.
Esta semana, após a declaração de Bolsonaro de que o óleo poderia ter origem venezuelana, se somaram à lista de fontes o Ministério da Defesa e o governo venezuelano. Além destes, nota-se ainda a aparição pontual da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, de agências de turismo como a CVC e de profissionais dermatologistas que apontam os riscos de contaminação humana pelo óleo, alertando os banhistas. No conjunto, apenas uma matéria, veiculada pela Folha de S. Paulo nesta quinta-feira 10 tem como fonte um pescador e uma pescadora.
No Jornal Nacional, campeão de audiência nos telejornais, nas oito edições analisadas de 28 de setembro a 8 de outubro, pescadores são mencionados em apenas uma matéria em nota coberta do repórter que refere-se à interrupção do trabalho ocasionada pelo óleo. Na mesma edição, as falas de Bolsonaro, Salles e de um pesquisador universitário são veiculadas. Na edição que foi ao ar, o tema ocupa oito minutos do total de 42 do jornal e novamente nenhuma comunidade é ouvida.
A concentração regional da produção de notícias no Sudeste e a falta de diversidade na cobertura jornalística são resultado direto da alta concentração de propriedade da mídia no Brasil conforme demonstrou a pesquisa “Quem Controla a Mídia”.
Tal concentração é responsável não só pela ausência de diversidade informativa entre os veículos, mas pela produção de silenciamentos históricos como este.
O silenciamento tem um resultado perverso sobre aquelas e aqueles cuja vida está intrinsecamente ligada aos manguezais, estuários, restingas, rios e mares, afinal, ao negar reconhecimento a estes atores enquanto fonte autorizada sobre esta questão, a mídia torna invisível mais uma vez os modos de vida de comunidades e povos tradicionais e retira destes a oportunidade de se colocar enquanto sujeitos de direito.
“A mídia no máximo fala sobre os animais. Só fala que a tartaruga vai morrer, que o peixe boi vai morrer, e nós? E os pescadores e nós marisqueiras que vivemos destas águas? Como é que sustenta nossas famílias com esse vazamento? Nós pescadoras e marisqueiras também temos vida, também temos importância. O mangue é a vida da marisqueira. A maré é a vida do pescador”, defende liderança do Movimento de Marisqueiras de Sergipe.
No estado de Sergipe, até o momento, foram atingidos os municípios de: Brejo Grande (foz do rio São Francisco); Estância (praia de Caueira, Abaís e Saco); Aracaju (praias do Mosqueiro, Atalaia, Coroa do Meio, Foz do rio Sergipe); Pirambu (praia de Pirambu); Barra dos Coqueiros (Pontal da Barra, praia do Jatobá, Porto, praia da Costa e Atalaia Nova); Pacatuba (praia de Ponta dos Mangues) e no Norte da Bahia, as praias de Conde (praia de Siribinha) e no município de Jandaíra, a praia de Mangue Seco, totalizando cerca de 40 km de impactos.
Embora o recorte das edições impressas dos jornais e a rápida análise do Jornal Nacional ofereça um conjunto pequeno no que concerne à quantidade de conteúdos veiculados pelos veículos de mídia sobre o tema, compreende-se que, exatamente por exigir um esforço de edição maior, o enquadramento do tema é indicador importante de como estas empresas de mídia pautam o debate público.
Nas mesmas edições em que o vazamento foi tema, por exemplo, mereceu amplo destaque os leilões do pré-sal em Abrolhos. Também neste tema a questão dos conflitos decorrentes da extração e benefício do petróleo foi tematizada sem a participação dos povos do mar.
Tal situação, conforme já tratamos neste blog, contraria o direito à informação e à comunicação essenciais aos cidadãos como destaca a Constituição Federal em dispositivos como o Artigo 5 (direitos individuais), Artigo 37 (princípios de administração pública) e os artigos 220 a 224 (que tratam da comunicação social) que contemplam o direito ao cidadão de informar, de se informar e de ser informado.
É importante lembrar ainda que o Brasil firmou compromissos internacionais nesse sentido, incluindo a assinatura do Acordo de Escazú em setembro de 2018 – tratado que estabelece os parâmetros para a participação social, acesso à informação e à Justiça em questões ambientais em países da América Latina e no Caribe.
A assinatura representa uma importante conquista para a sociedade civil na defesa dos objetivos que o acordo abrange: “garantir a implementação plena e efetiva, na América Latina e no Caribe, dos direitos de acesso à informação ambiental, participação pública nos processos de tomada de decisões ambientais e acesso à justiça em questões ambientais (…)”.
Hoje, quando o impacto do vazamento nas vidas de pescadores, mangabeiras, marisqueiras, quilombolas e populações camponesas atinge tamanha proporção, o enfoque da mídia nacional concentra-se na batalha entre declarações do governo brasileiro acusando a Venezuela e notas do governo venezuelano refutando a hipótese apresentada por Bolsonaro.
O presidente brasileiro parece seguir a cartilha dos chefes de estado do país quando confrontados com tragédias anunciadas como esta: passar a batata quente adiante e lavar as mãos. “Não é do Brasil, não é nossa responsabilidade”, declarou Bolsonaro.
Num jogo de interesses obtusos, a quem serve as escolhas editoriais da mídia brasileira ao silenciar determinadas narrativas e escolher ecoar outras?
Fonte: Carta Capital