“É fundamental ampliar o acesso ao atendimento em saúde mental associado às políticas de permanência na universidade”, afirma pesquisador

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por Camila Marins

É cada vez maior o número de casos de doenças relacionadas à saúde mental entre estudantes, professores e funcionários das universidades. Isso porque as cobranças assumem um nível elevado concomitante à conjuntura de crise política, econômica e social no Brasil, podendo levar, em casos mais extremos, ao suicídio. O estudo “Mudanças sociais, individualização e o sofrimento psíquico entre estudantes universitários” discute elementos fundamentais, como a construção de espaços de acolhimento, escuta e de auto-organização política dos estudantes como possíveis estratégias, além de políticas de permanência. De autoria do pesquisador de pós-doutorado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), Thiago Leão, a pesquisa revela os prejuízos de uma lógica baseada na produtividade e no desempenho.

Existem elementos que intensificam a piora do quadro de saúde mental entre os estudantes?

Diferentes fatores podem contribuir para que o sofrimento esteja mais visível e mais presente nas pautas de discussão, sem que necessariamente se configure uma piora. Sem dúvidas, a conjuntura atual contribui para a intensificação e generalização do sofrimento (não apenas entre estudantes): insegurança social (desde violência urbana à instabilidade político-institucional e desmonte de políticas sociais), mudanças nas dinâmicas de relacionamento entre os indivíduos, precarização das relações de trabalho e queda no padrão de consumo, por exemplo. Quando pensamos especificamente nos estudantes, temos uma intensificação das cobranças, metas de desempenho, sobrecarga de trabalhos, exigências e responsabilização perversa dos estudantes por não terem um desempenho sempre ótimo. Há uma série de contradições sociais, típicas de momentos históricos de intensa mudança, que são depositados sobre os estudantes como culpa pessoal. Ignora-se o contexto social mais amplo e os estudantes são responsabilizados por não darem conta. Concomitante a este quadro, os professores também ficam sobrecarregados, quando assumem encargos administrativos e sentem o desmonte da universidade pública e da carreira docente, enquanto são convocados para aprenderem a lidar com o sofrimento e adoecimento psíquico dos estudantes (apesar de não terem formação para tanto), ou ainda quando lidam com o próprio sofrimento e adoecimento. É um encargo muito perverso para impor aos professores que têm muito medo de lidar com um fenômeno tão complexo e delicado. Finalmente, há uma intensificação do sofrimento ligado ao bullying e às violências contra certos grupos, como mulheres, pessoas LGBT, pessoas com deficiência, negros, que só agora começam a ter mais visibilidade em certos espaços (seja por políticas de inclusão ou por conseguirem se assumir publicamente). O ambiente social, cada vez mais polarizado e articulado por discursos de violência e “cada um por si”, apenas intensifica o quadro de sofrimento mental entre estudantes.

Estes casos também atingem estudantes de mestrado e doutorado e professores?

Há uma percepção de que as cobranças e o ambiente da pós-graduação são ainda mais psicopatogênicos e, de fato, os estudantes de pós-graduação estão ainda mais sozinhos em sua produção acadêmica, com menos políticas institucionais de permanência, e ainda precisam lidar com a permanência na formação associada à inserção no mercado de trabalho, pois já são graduados. Estão em uma espécie de “limbo” entre a formação e o mercado de trabalho. É comum aquela citação: você chega a um almoço de família, conta que está no mestrado ou doutorado e ouve: “mas você não trabalha. Só faz isso?”. É importante, porém, destacar que não são apenas eles que sofrem e adoecem, e é preciso muita atenção para entender o que se passa também com estudantes de graduação, funcionários, pesquisadores e professores.

Como você articula as mudanças sociais com o aumento dos casos de doenças relacionadas à saúde mental?

Podemos pensar as mudanças sociais em duas dimensões que se autodeterminam reciprocamente e são codependentes e dialéticas: mudanças sociais nas condições materiais de vida e mudanças sociais subjetivas. As mudanças materiais dizem respeito às transformações econômicas, padrões de consumo, organização familiar, relações de trabalho, leis, dinâmicas políticas etc. As mudanças subjetivas, de forma simplificada, têm a ver com o impacto dessas mudanças materiais sobre as formas como o indivíduo se relaciona consigo mesmo, outras pessoas e a sociedade, ou seja, as formas de “estar no mundo”, de amar e de sofrer, novas formas de consciência, de agir e pensar, de adoecer e consumir. Há muito tempo se discute, nas ciências sociais e na psicanálise, como as mudanças nas condições materiais de vida não apenas modificam as condições subjetivas, como também causam sofrimento porque “tiram o chão” das pessoas. Há um desencontro traumático entre o que entendemos (consciente e inconscientemente) sobre a sociedade e como ela se mostra historicamente. Por exemplo: nossas expectativas sobre a família, os papeis sociais de homens e mulheres, sobre o amor, trabalho, amizade, política, que acabam “descasadas” das novas formas como a família, o amor, os gêneros, o trabalho, a amizade e a política se apresentam hoje. Em nossa perspectiva de análise, associadas à insegurança social generalizada (violência, instabilidade político-institucional, implosão de redes de segurança sociais) estão as cobranças sociais por desempenho e responsabilização pessoal. As mudanças sociais são geradoras de muito sofrimento, levando a quadros de ansiedade, depressão, pânico, adicção, distúrbios alimentares e, nos casos mais extremos, aos surtos psicóticos e (tentativas de) suicídio. Quanto maior esse desencontro entre sociedade e indivíduos (típico de momentos de intensa transição ou transformação social), mais se constata o mal-estar e sofrimento psíquico.

Que medidas a universidade pode tomar em relação à saúde mental?

As respostas institucionais ainda são “tímidas” nas universidades públicas, uma vez que a resposta costuma ser ampliar o acesso a serviços de saúde mental e fornecer instrumentos teóricos para que professores e funcionários possam prevenir e/ou acolher o sofrimento de estudantes. O problema é que intensifica o entendimento de que o sofrimento entre estudantes é uma questão individual, aumentando, portanto, os encargos sobre professores e funcionários sem necessariamente oferecer melhores condições de trabalho. 

Por parte dos estudantes, as instituições parecem acreditar que, se eles souberem se organizar melhor, estudar melhor ou dormir melhor, vão saber lidar com o sofrimento ou simplesmente não sofrerão. Isso obviamente é um equívoco que ignora os determinantes sociais do sofrimento e deposita sobre os estudantes a responsabilidade de superação. Muitas faculdades particulares têm seguido este último caminho, com propostas de disciplinas de “inteligência emocional” ou “coaching”, que caem no mesmo problema e têm o potencial de agravar os casos de sofrimento e adoecimento.

E o que fazer?

Primeiro, temos que compreender que não é possível prevenir ou anular completamente o sofrimento. Ainda porque as razões de sofrimento podem escapar bastante à governabilidade das universidades (questões familiares, de emprego, crises econômicas e políticas etc). Isto dito, ampliar o acesso ao atendimento em saúde mental é fundamental (a questão é não fazer isso isoladamente) associado às políticas de permanência na universidade, colocar em questão a lógica produtivista e as demandas excessivas sobre estudantes, funcionários e professores, abrir espaços de auto-organização dos estudantes (onde eles possam perceber que não estão sozinhos em seu sofrimento e que podem articular suas demandas de forma coletiva), dando melhores condições de estudo e de trabalho nas universidades, abrindo espaços de debate e escuta sobre o sofrimento (o medo de tocar no assunto e o silenciamento só pioram o quadro) e, de forma articulada e nunca como solução única, munir estudantes com conhecimentos e estratégias para lidar melhor com as pressões. Ainda, identificar e coibir eventuais abusos e violência, como discriminações contra minorias, racismo institucional, violências de gênero, assédio sexual e moral. E a primeira coisa a se fazer: escutar estudantes, professores e funcionários. Antes de fazer, entender, buscar escutar e compreender o que está acontecendo para ter melhores condições de responder. Não adianta tentar responder sem escutar e entender a pergunta primeiro. Nossa pesquisa quer ajudar a cumprir esta função: entender o que está acontecendo para melhor responder ao fenômeno. 

Quais são os principais casos e relatos na universidade?

Como as pesquisas tendem a olhar para o sofrimento por um viés muito individualizado e médico, os dados que encontramos mostram números de estudantes que procuram atendimento psiquiátrico, casos de depressão, ansiedade, adicção (álcool e psicofármacos principalmente entre estudantes da área da saúde). Nas mídias de grande circulação, os casos de suicídio ou tentativa de suicídio tomaram as manchetes. Mas estas são expressões limítrofes de um sofrimento mais generalizado e invisibilizado, do qual devemos cuidar antes que chegue a essas situações extremas. Apesar da perspectiva individual, sofrimentos ligados a bullying, discriminações e violências contra certos grupos, assédio moral e sexual também são relatados, mas também são mais silenciados por diversos fatores.

Como superar essa lógica de culpabilização que a sociedade impõe ao indivíduo?

Não é uma tarefa fácil. Esta é uma “lógica” muito disseminada socialmente, muito aceita e internalizada. Inclusive, é um discurso amplificado pelos políticos, pela cultura de autoajuda e empreendedorismo, pela religiosidade, enfim, por todos nós. Não é apenas uma lógica, mas uma cultura e uma forma social historicamente construída: a responsabilização pessoal é uma construção ideológica, cultural e histórico-social. Não nos culpamos apenas porque alguém diz que é nossa culpa, mas porque a própria sociedade hoje se constituiu historicamente de forma a colocar o indivíduo no centro e como motor da sociedade.

Mas isto não quer dizer que não podemos buscar formas de recoletivizar os desafios da universidade e ressignificar o sofrimento de forma a não culpabilizar exclusivamente o indivíduo. Uma dessas formas, eu acredito, é ter espaços de discussão que desconstruam o imaginário social que leva à (auto) culpabilização. Iniciativas como esta da Fisenge também são fundamentais para popularizar a discussão, levar conhecimento e colocar a questão em pauta. Outra questão que considero importante é entender que o sofrimento muitas vezes vem por demandas políticas não realizadas. E quando falo em política não é no sentido partidário. Mas de demandas coletivas que precisam ser articuladas na esfera pública. Por exemplo, se um estudante de outra cidade chega na universidade e não tem onde morar, não tem dinheiro para comer em restaurantes ou fazer mercado todo mês, ou pagar transporte público, isto obviamente vai gerar sofrimento e não há remédio ou tratamento milagroso, não há técnica de estudo ou aula de “inteligência emocional” que vá resolver a causa do sofrimento. O mesmo acontece se o sofrimento for causado por bullying, violência, assédio moral ou sexual. É fundamental que os estudantes possam se articular coletivamente para que essas demandas sejam resolvidas. Cabe à universidade incentivar esta organização, garantir espaços e condições para os estudantes e meios institucionais para estas demandas serem reconhecidas. Por exemplo, a FEA-USP de Ribeirão Preto organizou a Comissão de Acolhimento e Orientação (CAO) de estudantes e a Faculdade de Saúde Pública da USP, onde realizo minha pesquisa, a Comissão de Ética e Direitos Humanos. Esses espaços não substituem a organização dos estudantes, mas podem e devem ser canais de articulação e apoio das demandas estudantis.

Foto: Marcos Santos / USP Imagens