Privatização do saneamento não vai ampliar serviço e limitará acesso à água

notice
Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp
Share on email

Ex-presidente da Agência Nacional de Águas lembra que sistemas são integrados e que empresas só atendem quem pode pagar.

notice

Foto: Agência Brasil

Assim como nos anos 1990, quando a promessa de que a privatização do setor elétrico iria melhorar e baratear o serviço acabou virando apagão, o mesmo erro está para ser cometido novamente, desta vez no setor de água bruta (rios, aquíferos) e no setor de saneamento e esgoto.

Erro não é a melhor palavra para definir o que pretende o senador Tasso Jereissati. O tucano do Ceará recolheu, em maio, duas medidas provisórias que haviam sido derrotadas politicamente e as transformou, a toque de caixa, no Projeto de Lei 3261, já aprovado no Senado e prestes a ser votado na Câmara. Caso tenha sucesso, o projeto vai permitir a entrega de empresas estatais de saneamento para a iniciativa privada.

O estatístico Vicente Andreu, ex-presidente da Agência Nacional das Águas (2010 a 2018) e ex-sindicalista (foi dirigente do Sinergia-CUT), reconhecido como um dos principais especialistas do setor, afirma que a experiência histórica demonstra que a iniciativa privada tem por objetivo comprar ativos prontos e não aplicar dinheiro na ampliação dos serviços para as camadas de baixa renda, especialmente serviços dispendiosos como o tratamento de esgotos. Como prova, Andreu evoca o exemplo da privatização da energia no Brasil: novas hidrelétricas, expansão das linhas e outros avanços só aconteceram por iniciativa governamental. Não houve investimento por parte de quem comprou estatais.

Tasso Jereissati também tem outro projeto para privatizar a água bruta, o 495/17. Tasso é conhecido, inclusive por seus pares, como “senador Coca-Cola”. Ele é dono de uma grande engarrafadora do refrigerante. A marca multinacional tem forte interesse em comprar jazidas de água, essencial para produzir seu líquido escuro e gasoso.

Acompanhe a entrevista com Andreu.

Há dois projetos em tramitação no Congresso que pretendem privatizar a gestão das águas e o tratamento de esgoto no Brasil. Quais são os riscos que esse projeto traz para a população, em especial a que mora nas periferias?

Vicente Andreu – Esses projetos desmontam o sistema de recursos hídricos do Brasil. As águas são consideradas bens públicos, e isso está na lei. Os projetos querem transformar a água em uma mercadoria, literalmente. Em momentos de crise de abastecimento, ficará bem claro quem tem acesso preferencial à água. O projeto de lei 3261 desmonta o conceito de titularidade municipal. O capital vai sempre escolher atuar onde tem escala. Em alguns municípios tudo bem, há escala, mas nas cidades menores, não. O projeto acaba com a titularidade municipal porque cria o conceito de serviço comum e serviço local. No serviço local, o serviço passa a ser de exclusividade do município e ele não pode usar nenhuma estrutura compartilhada, o que, no caso do Nordeste brasileiro, acaba com tudo, porque de uma maneira geral as cidades precisam usar estrutura compartilhada. Mas o projeto isola o município.

Os municípios passariam a funcionar como células isoladas? Aqueles que hoje não têm estrutura própria voltariam à estaca zero se o projeto for aprovado?

Na verdade, você muda o patamar de quem tem a titularidade de decidir sobre o serviço. Os projetos têm uma série de absurdos. No Brasil usa-se a tradição, que tem custo maior, de separar água de chuva da água do esgoto. Você não pode direcionar a água das chuvas para o esgoto, mas agora você vai poder jogar. Uns pontos foram abordados pela mídia, outros não. Um dos absurdos é criar um sistema unitário e um sistema exclusivo. É uma definição conceitual. A tradição brasileira é de uma opção mais cara, que é a de separar água de esgoto de água filtral. Vários países trabalham com esse sistema, que tem suas vantagens e desvantagens. No caso brasileiro, você não pode jogar o esgoto na água da chuva. Isso inclusive ajuda na preservação dos rios.

Qual o estágio em que se encontra esse projeto? Já tramitou em todas as instâncias?

Já foi aprovado pelo Senado e agora vai para a Câmara. Se não houver nenhuma alteração na Câmara, está aprovado. Se houver mudanças, volta para o Senado. Em menos de uma semana foi apresentado o projeto de lei e foi aprovado. Sem nenhum debate.

Existe uma versão muito recorrente na imprensa, e que acaba convencendo boa parte das pessoas, de que o serviço público é ruim, não dá conta de atender todo mundo, então a solução é vender: a execução dos projetos seria mais rápida, o serviço seria melhor e chegaria a todos. O que você acha disso?

No Brasil já existem evidências sobre essa questão do saneamento e abastecimento. Basta você fazer o cruzamento de onde chega o serviço com a renda de quem recebe o serviço. É fácil associar onde há maior carência desse serviço: é nas camadas mais pobres. Este argumento da privatização não se sustenta. De uma maneira geral, o capital quer atuar onde há capacidade de se pagar pelo serviço. Não há nenhum interesse em ampliar para os setores mais pobres. Isso é facilmente comprovável quando você cruza a carência desse sistema com a renda das populações. Penso que o maior problema do nosso sistema é a ausência de tratamento de esgoto, que é um serviço caro. As empresas privadas só vão atuar se houver condições de cobrar tarifa. E o histórico de tarifas mostra isso. Deixa explicar: para controlar a inflação no passado, os governos não deixavam subir as tarifas de água, mas liberavam as empresas para cobrar tarifa de esgoto, mesmo quando esse tratamento de esgoto não era feito.

Quando você fala em passado, você está falando de quanto tempo, de qual época?

Estou falando das décadas de 1970, 1980.

Ditadura militar, portanto.

Os governos permitiam que as empresas cobrassem pelo esgoto que elas não ofereciam. Com isso você não tinha o reajuste na tarifa de água. Então, se a tarifa de água era na realidade 10, o cidadão pagava 20. Então a tarifa de esgoto foi incorporada na tarifa de água. No boleto, não havia aumento, mas o ganho das empresas estava oculto, porque cobravam por algo que não ofereciam. Isso provocou uma distorção do preço real muito antiga. Quando você introduz a prestação do tratamento de esgoto, você inclui um serviço que já vinha sendo pago. Neste momento, começa uma pressão enorme do poder público sobre as empresas privadas, o que gera uma contradição na prestação do serviço. As empresas privadas não querem esse serviço. O tratamento de esgoto só vai ser aprimorado através de uma política pública, de uma regulação muito bem definida, da capacitação das empresas públicas. Nós temos um exemplo que ilustra bem essa situação, que é o caso da privatização do sistema elétrico brasileiro. Quando se avaliou a necessidade de entrada do capital privado no sistema, era para que ele financiasse obras novas. Se esse capital privado fosse consumido na aquisição de empresas já existentes, ficariam comprometidos os recursos para investimentos. E no saneamento está acontecendo a mesma coisa. Está sendo tratado como investimento a compra de ativos já prontos. Essa política de vendas de ativos já prontos é muito mais uma política ideológica. Porque se deveria abrir para o capital privado aquilo que fosse expansão do sistema. Se eu tenho 100 para investir e compro uma empresa por 95, eu só tenho cinco para investir. Então eu espero que a compra me dê lucro primeiro para só depois, lá adiante, talvez, eu investir em expansão do serviço. A privatização do setor elétrico já deu a pista. É uma política meramente arrecadatória e de perfil ideológico.

Não vai fazer o serviço chegar até quem hoje não dispõe do atendimento.

Essas pessoas só serão atendidas por políticas públicas. No setor elétrico, mesmo com as empresas privatizadas, o que levou luz para muitos que não tinham foi um programa público, o Luz para Todos. Não foi o investimento privado que levou luz para os pobres. Você deveria utilizar o superávit do setor para gerar subsídios para levar o serviço para quem não tem recursos. O que vai acabar acontecendo? O setor público, depois de vendidas as empresas, se quiser fazer investimento no setor de água e saneamento, vai precisar retirar recursos de educação, saúde, segurança. Porque o setor privado não vai fazer.

O melhor seria deixar o setor sob controle de empresas estatais que reverteriam a lucratividade que tiverem nas áreas mais nobres para investir nas áreas mais carentes, o que uma empresa privada não vai fazer.

No Nordeste existe uma prática de empresas públicas do setor que é o subsídio cruzado. É justamente isso: presta-se o serviço em áreas mais rentáveis, como Salvador, e o ganho é aplicado em serviços em áreas mais carentes. Essa é uma das razões para que governadores do Nordeste tenham se manifestado publicamente contra a privatização. Olha, vamos nos lembrar do que aconteceu na década de 1990 com a privatização do setor elétrico e a promessa de investimentos na melhoria. O que aconteceu?

Apagão. Eu queria agora perguntar o seguinte: muitos temem que a privatização das águas vai abrir caminho para multinacionais como Coca-Cola e Danone, que querem comprar um recurso que hoje tem importância estratégica maior até do que o próprio petróleo. O que você acha disso?

No Brasil, hoje, isso é impossível. A chance de isso acontecer é justamente a aprovação do projeto do senador Tasso Jereissati. Isso tornaria possível a propriedade privada da água para quem puder comprar. Hoje isso não é possível graças à legislação brasileira sobre a água bruta. Com o projeto do senador, isso será possível. Isso combina com as relações comerciais que ele tem com a Coca-Cola.

Para quem souber do que está acontecendo e não concordar, o que deve, o que pode fazer para barrar esse projeto?

O setor resistiu bem a duas investidas do governo Temer, houve grande mobilização para tentar barrar as duas MPs do Temer, no ambiente político, e as duas tentativas das MPs não tiveram sucesso. Aí, no prazo de praticamente uma semana, o senador Tasso Jereissati pegou as duas MPs, converteu num projeto de lei e conseguiu aprovar. Creio que temos de fazer muita mobilização política e buscar informar a população, através dos meios alternativos de comunicação. A mídia comercial faz uma apologia acrítica à privatização. Temos de usar as mídias alternativas, a conversa com a família, e apoiar os coletivos de luta pela manutenção da água como bem público.

 

Fonte: CUT /  Isaias Dalle, da Fundação Perseu Abramo