O relógio marcava 15h48 quando uma falha ocorrida em um disjuntor na subestação Xingu, no estado do Pará, desencadeou o desligamento de diversas linhas de transmissão de energia elétrica, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país. O súbito corte de energia, ocorrido em 21 de março deste ano, atingiu 70 milhões de pessoas e criou uma atmosfera de caos nas cidades afetadas.
De acordo com nota técnica elaborada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o motivo do acontecimento foi uma falha técnica que ocorreu em uma linha de transmissão operada pela concessionária Belo Monte Transmissora de Energia (BMTE). A empresa não informou ao operador que havia realizado um ajuste de proteção do disjuntor. Desconhecendo o limite, o operador determinou a passagem de uma carga superior à suportada.
A falha desequilibrou o sistema e causou um desligamento em cadeia que apagou 98% das linhas de transmissão do Nordeste e 86% do Norte. Das 480 linhas de transmissão nas duas regiões, 458 saíram do sistema. A queda de energia, de acordo com informações cedidas pelo ONS, teria se dado a partir de uma falha em um disjuntor de linha de transmissão que liga a Hidrelétrica de Belo Monte ao sudeste do país.
O chamado Linhão de Belo Monte tem mais de 2 mil quilômetros de extensão e foi inaugurado em dezembro do ano passado, com investimentos de 5 bilhões de reais. A linha de transmissão que comprometeu o abastecimento de grande parte do país é operada pela concessionária BMTE e controlada pela chinesa State Grid.
O efeito dominó
O efeito em cadeia na queda de energia ocorreu porque a Rede de Belo Monte é conectada ao Sistema Interligado Nacional, que liga todos os Estados do país, com exceção de Roraima. De acordo com o ex diretor de operação da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), José Ailton de Lima, o Brasil opera uma rede elétrica inteligente de alta potência e complexidade. “Se, por alguma razão, uma dessas linhas é desligada a transmissão de energia será interrompida. As causas do desligamento podem ser um erro humano, um defeito em um equipamento de importância vital, uma falha operacional”.
Para o engenheiro, não há condições de se ter uma rede imune a essas causas mas existem condições técnicas de se reduzir a probabilidade de ocorrências de eventos. “A redução da probabilidade de ocorrências de desligamentos passa pelos investimentos adequados nas fases de construção e operação”, destaca José Ailton. Por esse motivo é de vital importância a garantia de investimentos, boas condições de trabalho e qualificação dos profissionais.
Desde meados dos anos 1990, quando as empresas do setor elétrico foram incluídas no Programa Nacional de Desestatização (PND), a área experimenta uma série de mudanças, tornando-se cada vez mais fragmentado. Nessa época, a privatização aconteceu mais intensamente no ramo da distribuição, atingindo inúmeras empresas estaduais. Em 2013, a edição da Lei 12.783 definiu regras para a renovação antecipada de um conjunto de concessões de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica e, em recente anúncio, o governo federal informou a adoção de uma política de privatização ainda mais abrangente para o setor.
Para o diretor do Senge – RJ, Agamenon Oliveira, a fragmentação proposta pela política de privatização torna mais difícil a coordenação do setor elétrico brasileiro. “A geografia e a física desenhada é toda no sentido de se ter um sistema cooperativo e a pulverização vai contra a lógica do sistema”, explica o engenheiro. Agamenon acredita que, caso se confirmem os planos do governo, falhas similares à ocorrida em março vão se generalizar. E o aumento da probabilidade de ocorrências de apagões é apenas uma das preocupações de especialistas caso se tornem realidade os planos do governo para o setor elétrico.
A proposta de privatização
O recente anúncio do governo federal prevê a adoção de uma política intensa de privatizações no setor elétrico e abrange tanto as empresas federais (grupo Eletrobras), quanto estatais estaduais (concessionárias de distribuição). De acordo com a nota sobre a desnacionalização do setor elétrico brasileiro, elaborada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o Programa de Parceria do Investimento (PPI) e o Plano de Reestruturação da Eletrobras anunciam uma redução significativa do protagonismo da estatal no setor elétrico brasileiro, colocando em risco a engenharia nacional – já que há fortes indicativos que as chinesas (Three Gorges e State Grid) serão os principais agentes a operar o setor.
A justificativa do governo é que a ação resolverá a questão da manutenção preventiva e que há chances de ser uma alternativa frente à crise econômica do setor elétrico, gerando receitas extras para reduzir a dívida pública. Entretanto, para José Ailton, os fatos demonstram o contrário nos projetos que a iniciativa privada assumiu sozinha: “Vai se priorizar o retorno para acionistas em prejuízo da segurança do sistema elétrico”.
A partir dos resultados da implementação de uma legislação que foi desregulando o setor, é possível vislumbrar a introdução de uma lógica mercantil. Conforme aponta o Dieese, uma das principais marcas do processo de privatização é a mão de obra terceirizada, que praticamente inexistia no setor elétrico até a primeira metade da década de 1990. “A terceirização do setor tem como principal característica a precarização das condições de trabalho. A incidência, bem como o número de acidentes graves e fatais com terceirizados, é muito superior aos do quadro próprio”, destaca a nota. A reforma trabalhista aprovada pelo governo Temer é um importante instrumento auxiliar nesse caso.
De acordo com Clarice Ferraz, professora da Escola de Química da UFRJ, “em um primeiro momento, há uma grande preocupação com o impacto sobre as tarifas, em particular, com o aumento nas tarifas dos consumidores cativos. As privatizações realizadas em outros países, com raras exceções, não trouxeram como resultados queda nos preços, e sim aumentos”. A professora destaca que, em meio a tantos problemas relacionados ao projeto de privatização, é fundamental discutir e estabelecer o futuro do setor elétrico brasileiro.
Entretanto, conforme destaca Agamenon Oliveira, o recente programa de privatização do setor não prevê nenhum tipo de consulta à sociedade e sequer menciona os trabalhadores das empresas que poderão ser privatizadas. Audiências públicas estão sendo organizadas por movimentos sociais e sindicatos. O Plenário do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) se posicionou recentemente contra a privatização da Eletrobras.
Para Agamenon, o projeto de privatização deve ser interrompido imediatamente em nome do longo prazo do setor elétrico, da segurança dos trabalhadores e da garantia de acesso ao serviço pela população. “É por meio de empresas públicas que alcançamos metas públicas”, garante o engenheiro.
Energia e segurança nacional
No segmento de geração hidrelétrica é notório a prevalência inquestionável do setor público em diversos países.
- Na China, que responde por 27% de toda a capacidade instalada mundial, predominam as empresas estatais hidroelétricas.
- O mesmo ocorre com o segundo país em capacidade instalada, os Estados Unidos, em que 73% pertencem a órgãos ou empresas públicas.
- No Canadá e Noruega, onde predomina a fonte hidroelétrica, a participação do setor público chega a alcançar 90%;
- Na Índia, a participação do setor público atinge 93%. Também é maioria na Rússia (62%), Turquia (55%) e França (82%)
- No Brasil, mesmo que se considerem as participações minoritárias em empreendimentos controlados pelo capital privado, as empresas estatais respondem por 54% da capacidade hidrelétrica instalada.
(Fonte: Nota Técnica Número 189, Janeiro 2018 Empresas estatais e desenvolvimento: considerações sobre a atual política de desestatização – Dieese)
Por: Laura Ralola com entrevistas de Camila Marins.