O movimento Escola Sem Partido (ESP) ganha força no Brasil propondo polêmicos princípios que devem orientar a educação nacional. De acordo com especialistas, o projeto ataca diretamente o ofício do professor, ameaçando o caráter educacional da escola. Para entender melhor sobre os perigos da proposta, a Fisenge conversou com o coordenador do Movimento Educação Democrática e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Fernando Araújo Penna.
Por Laura Ralola, para a revista da Fisenge
Nos últimos anos, o movimento ganhou força política, crescendo de forma expressiva e tornando-se um projeto de lei de alcance nacional. O que é, como surge e o que diz o movimento Escola Sem Partido?
O movimento Escola Sem Partido surgiu por iniciativa de um advogado chamado Miguel Nagib, em meados de 2003, quando ele discordou de uma comparação feita pelo professor de História de sua filha em sala de aula. A reação dele foi produzir uma carta em repúdio à fala do educador e distribuir na escola, entre alunos, familiares e direção. A carta, entretanto, não teve a reação que ele imaginava, já que todos apoiaram o professor. Neste momento, ele identificou aquilo que depois veio a chamar de “Síndrome do Estocolmo”: para ele, os professores seriam “sequestradores intelectuais”, ou seja, o professor de sua filha foi defendido, porque os alunos estariam sofrendo de “Síndrome do Estocolmo”. Nagib, então, criou um movimento para lidar com o “problema”, surgindo, assim, o Escola Sem Partido (ESP). Ao longo da primeira década não foi um movimento muito relevante, mas começou a ganhar pertinência e força especialmente em 2014, quando o deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PSC), pediu para que Nagib formulasse um Projeto de Lei (PL) capturando as ideias do ESP. A sugestão do próprio Flávio era que o projeto se chamasse Programa Escola Sem Partido. O primeiro PL foi apresentado pelo deputado estadual em 2014 e, logo em seguida, pelo vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (PSC). O advogado Miguel Nagib fez um anteprojeto modelo do texto que redigiu para a família Bolsonaro e compartilhou no site do movimento ESP. Dentro do atual contexto que estamos vivendo, que muitos entendem como uma onda conservadora, o projeto de Nagib já foi apresentado na Câmara e no Senado, em mais de 10 estados e no Distrito Federal e em muitos municípios. Os PLs espalhados pelo país pretendem estabelecer princípios que devem orientar a educação nacional e que ainda propõem a fixação de cartazes nas salas de aula com intuito de conscientizar os alunos de seus direitos.
Professores, alunos e membros de movimentos sociais vêm questionando o movimento. Como o ESP pode atrapalhar o ofício do professor?
Segundo defensores do programa, o ESP tem como objetivo garantir elementos que já estão em nossa legislação. Agora, a meu ver, é uma argumentação infundada. Como mencionei, o projeto foi apresentado em muitos estados. O único no qual foi aprovado, entretanto, foi no estado de Alagoas. Lá se tornou a Lei 7.800/2016 e, logo quando aprovada, foram apresentadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN). Essas ações ainda não foram julgadas até o fim, mas temos documentos que apontam para a inconstitucionalidade da Lei. O primeiro foi um documento produzido pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, depois a Procuradoria Geral da República produziu uma argumentação, vale destacar, muito bem fundamentada, tanto do ponto de vista legal quanto pedagógico. Outra ação foi uma medida cautelar do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu o efeito da Lei de Alagoas. Essas três instâncias a consideram inconstitucional, o que aponta que não é, simplesmente, algo já previsto na Constituição, como afirmam os defensores do ESP. Existe algo a mais. Um dos primeiros artigos do anteprojeto modelo, que varia de PL para PL, pretende estabelecer os princípios que devem orientar a Educação Nacional, mas não menciona que os princípios já são estabelecidos na Constituição Federal, no artigo 206, e na Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Se compararmos o projeto ESP e o que está na legislação percebemos que, se no projeto diz que um dos princípios deve ser o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”, na Constituição está “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Eles colocam que um dos princípios deve ser “a liberdade de aprender do aluno”. A nossa Constituição fala da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar, divulgar o conhecimento, a arte e o saber”. Eles excluíram a “liberdade de ensinar”, assim como o “pluralismo de concepções pedagógicas”. Ou seja, deixaram de fora tudo aquilo que é vinculado à figura do professor. O ESP é um ataque direto à docência.
Quais são os maiores perigos deste movimento?
O projeto propõe como princípio da educação nacional algo que é mais ou menos assim: “é direito dos pais, e quando for o caso tutores, que seus filhos recebam educação moral e religiosa de acordo com as suas crenças”. Eles tiraram isso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, do artigo 12, inciso 4º, que visa proteger as famílias no espaço privado contra intervenção indevida do Estado. Entretanto, eles esquecem de mencionar que existe um protocolo adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos, o protocolo de São Salvador. Esse protocolo tem um artigo específico sobre o direito à educação e nele está dito explicitamente que a escola deve educar com base na democracia, no combate às formas de desigualdade, etc. Os defensores do ESP insistem que só quem educa é a família, que a escola deve apenas instruir. Isto seria, na linguagem deles, “transmitir conhecimento neutro sem mobilizar valores” e sem falar da realidade dos alunos, o que seria um prejuízo enorme para a escola. Eu sempre tenho dito que o ESP é um projeto que remove da escola seu caráter educacional. Como se isso fosse possível, como se os professores pudessem não falar da realidade no qual os alunos estão inseridos. Ao contrário, toda a discussão pedagógica insiste que dialogar com a realidade é fundamental para tornar o ensino de qualquer disciplina significativo para os alunos. É este o prejuízo principal do projeto, tentar tirar a dimensão educacional da escola. O artigo 3º do PL 267/2015, da Câmara dos Deputados, diz o seguinte: “estão vedadas em sala de aula as práticas de doutrinação política-ideológica” – que eles não definem em momento nenhum, sendo este um dos elementos de inconstitucionalidade. Logo em seguida dizem “bem como a realização de atividades que possam entrar em contradição com as crenças e valores morais e religiosos da família”. Por exemplo, o professor de Física vai falar sobre a terra ser redonda, o aluno vem e diz que a crença familiar dele afirma que a terra é plana. O professor vai dar aula de teoria da evolução e aí o aluno acredita no criacionismo. Um professor de História, como já aconteceu em São Paulo, vai falar sobre o nazismo e o pai do aluno pede para ele citar os aspectos positivos do nazismo. Percebe? O Programa ESP coloca em risco especialmente a área das Ciências Humanas, que lida não só com um passado distante, como também com um passado recente, envolvendo questões religiosas e culturais, o que leva a esse conflito com algumas crenças particulares.
Por que é fundamental a discussão da diversidade sexual e de gênero nas escolas?
O que deve fazer um professor quando vê caso de machismo, homofobia ou transfobia em sala de aula? Não só impedir que isso se repita, como também explicar que na sociedade atual esse tipo de comportamento não é aceito, porque as relações mudaram ao longo do tempo. A escola tem um papel fundamental nesse processo. O ESP cresce muito a partir de 2014, quando vira PL. O projeto da Câmara, de 2015, não traz a proibição da discussão de gênero, mas o de 2016, que é do Senado, traz. O que aconteceu? Ao longo dos últimos anos a temática de gênero se tornou alvo de movimentos conservadores, principalmente de cunho religioso. Esses movimentos usam o termo “ideologia de gênero” para desqualificar a discussão nas escolas. Eles afirmam que tal discussão seria uma tentativa de “erotizar a juventude, de transformar os jovens em gays e lésbicas, em suma, destruir a família tradicional”. Discutir gênero em sala de aula não é isso de maneira alguma. A meu ver, a principal função dessa discussão é combater a desigualdade de gênero. Eu tenho percebido um uso político do pânico moral, ou seja, usa-se a ideia da “ideologia de gênero” como tentativa de destruir a família como uma maneira de gerar pânico na sociedade, especialmente entre aqueles que não conhecem o cotidiano escolar. Usam esse pânico para conseguir capital político. O ESP, então, entra nessa onda. Inicialmente não tinha nenhuma proibição específica da discussão de gênero, isso foi incorporado como uma forma de dar solução para a questão, ganhando mais espaço político. Assim, o ESP se torna também uma pauta para esses setores conservadores preocupados com a questão de gênero nas escolas. Eles dizem agora, por exemplo, que LGBTfobia não é tema da escola. Então, o que deve fazer um professor que presencia um caso de homofobia em sala de aula? Ele não pode pensar em uma intervenção pedagógica para lidar com isso? Para tentar combater esta forma de desigualdade em sala? Segundo o ESP, não.
Durante a votação do impeachment da presidenta Dilma na Câmara em 2016, muitos deputados justificaram o voto “sim” pelo “fim da doutrinação nas escolas”. A que você atribui isso?
Eu vejo como uma reação aos avanços, mesmo que não os ideais, que tivemos no governo do PT com relação à questão de gênero e diversidade cultural. Por exemplo, durante o governo Lula foram criadas Leis que tornaram obrigatório o ensino de Arte e Cultura Afrobrasileira e Indígena. Os defensores do ESP acusam materiais didáticos de fazerem “doutrinação religiosa de candomblé e umbanda” apenas por veicular, por exemplo, uma imagem de Xangô. Ao longo desses anos tivemos a produção de materiais didáticos de combate à LGBTfobia e toda a desqualificação desse material, que foi a falácia do “kit gay” em meados de 2011. Os pontos atacados pelo ESP são justamente os pontos nos quais tivemos alguns avanços, como a questão da cultura afrobrasileira e indígena e a questão de gênero. Eu vejo muito como reações aos avanços que nós conseguimos ter no campo educacional, especialmente de combate às formas de desigualdade na educação.
Por fim, a atual conjuntura política fortalece o movimento? Como resistir ao ESP?
O que acontece com a entrada do governo Temer é uma perda do caráter democrático de toda a discussão e elaboração das políticas públicas. A Reforma do Ensino Médio implementada por medida provisória é um caso notório. Todo o processo foi muito rápido, sem consulta aos educadores e aos pesquisadores do campo da educação. Sem dúvidas, é um momento que pode ser positivo para um projeto antidemocrático como o ESP. A terceira versão da Base Nacional Comum Curricular, por exemplo, divulgada recentemente, não tem a discussão de gênero. A discussão foi excluída por pressão das bancadas conservadoras, as mesmas que tentam aprovar projetos como o ESP. Fundamos recentemente uma associação chamada Movimento Educação Democrática. Durante algum tempo fomos só contra: contra a reforma do ensino médio; contra a terceira versão da Base; contra o ESP. Refletimos que seria interessante pensar um movimento mais propositivo, com o qual pudéssemos nos opor a tudo isso, entendendo que o ESP é uma ameaça à escola que queremos, mas, sobretudo, pensar juntos, de maneira democrática, o que seria essa educação que queremos. A associação foi fundada recentemente, no dia 29 de junho de 2017, e pretendemos articular pessoas do Brasil inteiro, para que consigamos proteger esses professores. Para que os professores saibam quais são seus direitos e o que podem ou não fazer em sala de aula. É um espaço também de acolhimento e de compartilhamento de histórias de maneira que esses professores não sejam facilmente intimidados.
Foto: Adriana Medeiros
Entrevista: Laura Ralola para Fisenge