Histórias de resistências, combate ao nazismo, discriminação por ser mulher. Esses são alguns dos assuntos abordados no livro “Uma vida de lutas”, da militante Renée de Carvalho, lançado pela Editora Perseu Abramo. Com prefácio assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a obra detalha as mais importantes passagens da vida de Renée, membro ativo da Resistência francesa ao nazismo e grande pilar da luta das mulheres por espaço na vida política.
Nesta entrevista, ela fala um pouco sobre o livro, o envolvimento com o Brasil e as perspectivas para as mulheres no futuro.
Como surgiu a ideia de realizar o livro?
– Meu filho tentou, durante uns três anos, convencer-me a escrevê-lo. Mas eu achava que meu olhar sobre esse período não era diferente , pelo fato de ser mulher, e pelo papel subordinado que nós, as mulheres, tínhamos nas organizações de esquerda, no caso o PCB. Marly Vianna, doutora em História, conseguiu, após várias conversas sobre reminiscências e sobre pessoas que conhecíamos, convencer-me a responder a um roteiro de perguntas e gravou – com meu consentimento, é claro – minhas respostas e as conversas que tivemos durante as entrevistas. Ramon Peña, seu companheiro e professor da Fiocruz, a auxiliou em todo esse processo. A minha participação veio depois. Eu li os resultados da sequência de entrevistas e achei que elas poderiam ser transformadas em livro, em escrita corrida e não apenas sob a forma de perguntas de respostas. Eu não queria muito essa história de livro, mas meu filho buscou identificar lacunas temporais deixadas pelas perguntas e cobriu-as me entrevistando de novo sobre essas questões.
Como começou seu envolvimento com o comunismo e a política?
– Como conta no livro, a aproximação de minha família com o Partido Comunista Francês fez-se inicialmente através da luta dos comunistas em Marselha, para renovar a política local, dominada por máfias e bandidos. Depois, veio o entusiasmo pelas greves e pela Frente Popular. E, logo depois, a luta de resistência contra o nazismo. A família toda fez esse percurso.
A senhora é francesa, mas se engajou durante anos nas causas brasileiras. Como foi construída essa relação com o Brasil?
– Vir ao Brasil foi uma decisão minha, de acompanhar o Apolônio. Com a cassação do PCB e a ida para a clandestinidade, apesar de todas as dificuldades, me engajei na militância do PCB. Hoje, apesar dos meus “rrrs”, me sinto mais brasileira que francesa.
Apesar de ter sido casada com um ícone da esquerda no Brasil, a senhora sempre manteve sua individualidade e opiniões. Houve muita discriminação por ser mulher, já que se trata de um universo predominantemente masculino?
– O primeiro grande choque para mim foi a rápida passagem à clandestinidade, no Brasil, com dois filhos, o que tornou minha vida muito difícil . A França era, também, antes da guerra, um país machista, até as escolas eram separadas para meninos e meninas. Depois da guerra, entretanto, as coisas começaram a mudar. Muitas mulheres tinham participado da Resistência. Várias continuaram mesmo no exército. No contexto do pós-guerra, o anseio igualitário cresceu.
No Brasil, a sociedade e o Partido permaneciam ainda atrasados frente a essas questões. As mulheres no Partido eram tratadas como na sociedade da época. A cozinha era um espaço somente feminino. Os companheiros, nas reuniões, tiravam os pratos da mesa, e não limpavam absolutamente nada. Era algo que afetava todas as mulheres militantes. Fazíamos, todo dia, comida para dezenas de companheiros e nunca alguém nos disse se estava bom ou não. Nenhum companheiro passava na cozinha. Nós estávamos apenas fazendo ‘nosso dever “… Isolada por minhas tarefas, não tinha uma visão de conjunto do Partido, mas não me lembro de ter encontrado, nessa época, nenhuma mulher que houvesse se tornado dirigente.
Como a senhora vê a participação atual da mulher na política brasileira?
– É uma participação crescente e muito positiva, que agora chega à Presidência e aos tribunais. Mas é preciso notar que os avanços em direção à igualdade ainda estão restritos a uma parcela pequena da população, e que muitas discriminações ainda são fortes: salários, estudo, progressão funcional, divisão das tarefas domésticas entre o casal e a possibilidade de escolher o momento em que queremos ter filhos.
Qual é a mensagem que a senhora daria às mulheres que pretendem participar da vida pública, seja em sindicatos, partidos políticos ou gestões governamentais?
– Houve importantes avanços e sua ampliação recente no quadro da eleição de uma mulher para presidente. Mas as mulheres devem continuar em sua luta, ocupar as posições a que são capazes, defender seus pontos de vista, para enfim chegar à igualdade com os homens. Ainda falta muito a avançar.