“Você não é nada, é apenas uma mestrezinha de obras”. Essas palavras foram ditas pelo engenheiro e gerente geral de produção da mestre de obras Maria do Amparo, vítima de assédio moral no trabalho, que transformou sua experiência de vida em um livro. O dano gerou graves problemas de saúde e uma condenação ao Consórcio Construtor Metrosal, tanto numa ação individual quanto numa ação civil pública, por danos morais.
Então surgiu o livro Simplesmente Maria, que teve a primeira edição esgotada e que agora foi reimpresso e será relançado. O lançamento aconteceu no último dia 31/10, às 16h, no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador, na Praça Municipal.
Primeira mestre de obras da Bahia, Maria do Amparo já foi encarregada das obras do Campo Grande e do Dique do Tororó, e já trabalhou em grandes empresas, como Odebrecht, Andrade Mendonça, Andrade Gutierrez e Camargo Correia. Com 27 anos de carteira de trabalho assinada, profissional experiente, recentemente sofreu assédio moral em uma das empresas responsáveis pelas obras do Metrô de Salvador. “Mesmo diante das palavras de humilhação não me deixei abater pela hierarquia, nem pelo machismo de muitos colegas da profissão”, relata a operária-escritora.
“A mulher que escolher seguir a profissão de mestre de obras deve ter um caráter muito forte, personalidade, e ser segura de si, pois nesse ramo de trabalho que favorece mais o sexo masculino, ocorre muito assédio moral e sexual, desmerecendo a capacidade feminina”, declara Maria do Amparo. Numa ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho na Bahia, através do procurador Manoel Jorge e Silva Neto, em 2011, ela foi testemunha e ajudou a obter a condenação do Consórcio.
O Senge BA e o Clube de Engenharia da Bahia são uma das diversas entidades que apóiam o lançamento da obra Simplesmente Maria.
“Parabenizo Maria pela luta de conseguir se projetar como mulher profissional. Ela é um exemplo do alto potencial de trabalho das mulheres no ramo da Engenharia”, diz o Engº Civil Paulo Medeiro, diretor do Senge BA e presidente do Clube de Engenharia da Bahia.
“Sou auditora fiscal há 30 anos na área de trabalho e primeiramente me chamou muito a atenção pela obstinação de Maria em entrar no mercado de trabalho da construção civil em uma época que isso era praticamente improvável. Outro aspecto é sua força e coragem em enfrentar o assédio moral, inclusive, perante a justiça”, Drª Isa Simões, superinentende do Ministério do Trabalho e Emprego.
Confira entrevista completa com Maria do Amparo.
Senge-BA – Como você acha que essa obra poderá impactar na consciências das mulheres profissionais?
Maria do Amparo (M.A) – Tenho certeza que vai elevar a auto-estima da mulher, porque muitas ficam intimidadas em assumir determinadas profissões e cargos que predominam a presença masculina. Acredito que através da história possamos despertar a consciência de que sim, as mulheres são capazes de exercer essas atividades que a sociedade limitou como “trabalho masculino”.
SengeBA- Ainda é difícil a identificação e o conhecimento sobre o assédio moral?
M.A – Acredito que a maioria das pessoas ainda não tem esse conhecimento sobre o que é o assédio moral, por vezes não sabem que sofrem ou já sofreram essa situação. Ou mesmo, acredita que determinada situação é assédio moral, mas não é. Precisa-se ainda ampliar muito a divulgação sobre o tema, mostrar as diferentes situações em que se aplica, ou seja, despertar a consciência do profissional sobre esse assunto.
SengeBA- Sua história mostra as diversas mudanças na vida de uma pessoa que sofre assédio moral. O quanto danosas podem ser essas conseqüências?
M.A – Apesar das possibilidades de reparações jurídicas, os danos causados pelo assédio moral podem ser irremediáveis. A minha história evidencia o quanto isso é real. Tive perdas não apenas materiais, mas também na minha saúde. Fui subjugada no ambiente profissional e as sucessivas humilhações me levaram a depressão. Sem saúde, fui obrigada a me afastar, ou seja, foi retirada a minha ferramenta de trabalho. A situação afetou toda minha família, que sofreu também com situação financeira, pois tive perda salarial. Então, a importância do assédio moral ser combatido não apenas pelas entidades e instituições profissionais, mas também pelo próprio trabalhador.
SengeBA- Como tem sido a repercussão do livro entre os leitores?
M.A – Tem acontecido uma troca muito importante. As pessoas começam a identificar e a assumir a realidade do assédio moral. Porque muitas sentem vergonha ou acham que serão mal compreendidas e prejudicadas se falarem sobre o assunto. Mas com a publicação do livro, tenho recebido muitos relatos, desabafos e pedidos de conselho sobre como agir. Recentemente, uma leitora me relatou sua história. Ela foi empregada para o cargo de servente, mas um dos seus chefes começou flertar e a diferenciá-la em relação aos demais. Até que ele a promoveu para um cargo que não tinha experiência de atuação sob a justificativa de que “era muito bonita para ser servente”. A situação vexatória a forçou a pedir demissão. Esse, inclusive, é um caso também de assédio sexual.
Senge-BA- Seu livro evidencia diferentes situações que caracterizam o assédio moral. Por que é uma realidade tão abrangente?
M.A – Porque são atos que expõem os trabalhadores e trabalhadoras ao vexame, à humilhação e ao constrangimento em seu exercício profissional. É ato de violência moral que desqualifica o profissional. Pode ser desde impedir uma ascensão profissional, rebaixar o salário, impedir ou dificultar o exercício de direitos trabalhistas, forçar a exercer atividades que não competem ou mesmo retirar funções próprias do cargo, ridicularizar com piadas, até quaisquer tipo de discriminação que diferencie o tratamento perante os demais colegas, seja por gênero, etnia, religião, origem, aparência física etc.
Senge-BA – Então as “minorias sociais” ainda são os principais alvos?
M.A – Sem dúvida. Sabemos que homossexuais, negros (as), deficientes físicos e mulheres ainda são a maioria das vítimas de assédio moral. Sou mulher e negra. Mesmo nas renomadas empresas de construção civil, tive que lutar muito para conseguir ser reconhecida pela minha qualidade profissional, e não julgada pela minha cor de pele e condição de gênero.
Senge-BA – Em que aspectos você observa avanços no respeito aos direitos das mulheres profissionais da Engenharia, principalmente, nos canteiros de obras?
M.A – Quando observei pela primeira vez uma construção, fiquei encantada. Ser mestre de obras se tornou um sonho profissional. Mas na minha época, mulher em canteiro de obra era para trabalhar na copa ou faxina. E comecei assim, mas observava o trabalho do mestre de obras, me aproximava dele e aprendia a técnica. Mesmo já com a experiência, ficava por horas aguardando para conseguir uma vaga. Era a última para entrevista de emprego, após muita insistência a espera do engenheiro. Por vezes, aceitava outro cargo no canteiro, com a expectativa de mostrar minhas habilidades técnicas no setor da construção civil e ser promovida a mestre de obras. Hoje é evidente o aumento do número de mulheres que trabalham no setor de construção civil. Elas são pedreiras, carpinteiras de fôrma, pintoras e eletricistas em canteiro de obras. As empresas já disponibilizam banheiros separados para homens e mulheres, oferecem cursos de qualificação, concedem a licença maternidade obrigatória por lei etc. Na minha época, se eu engravidasse perdia o emprego.
Fonte: Tanara Régis / Senge-BA