A Turquia não é uma ditadura, mas está longe de ser uma democracia
É difícil compreender como a demolição de um parque no centro de Istambul para a construção de um shopping tenha sido capaz de despertar um movimento de massas como temos visto hoje na Turquia.
Milhares – ou mesmo milhões – de jovens saindo às ruas não apenas em Istambul, mas em diversas outras cidades e, no processo, sendo vítimas de imensa repressão policial, com ajuda de gás de pimenta, balas de borracha, canhões de água e todo o aparato policial possível.
Muitos saíram feridos, outros foram mortos, atropelados por caminhões militares, por carros de polícia.
Na verdade, a questão é maior, muito maior que apenas um parque, o Parque Gezi, e a construção de um shopping. A insatisfação da juventude com o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan é o ingrediente principal para a revolta.
Erdogan comanda um partido islâmico, ainda que moderado, mas que tem imposto medidas de controle social que tem desagradado a população urbana e educada, feitas sob medida para agradar o eleitorado sunita conservador turco.
Uma dessas medidas que têm causado revolta foi a restrição na venda e consumo de bebidas alcoólicas, através de uma lei que passou pelo Congresso sem maiores discussões com a sociedade. Aliás, a falta de discussão com a sociedade de medidas governamentais diversas é uma das grandes razões pra a insatisfação dos jovens com o governo.
Majoritariamente laicos, educados e cosmopolitas, não conseguem compreender ou mesmo aceitar a imposição de medidas conservadoras que os afetam direta ou indiretamente.
Grandes alterações arquitetônicas e urbanísticas em Istambul, como a demolição de um cinema histórico ou a construção de mais uma ponte sobre o Bósforo, cujo nome é o de um sultão Otomano da Idade Média conhecido por perseguir a minoria religiosa dos Alevitas (que formam quase 10% da população turca), tem causado enorme descontentamento junto à população. A destruição do Parque Gezi foi apenas o estopim.
No primeiro de maio, milhares de estudantes e trabalhadores foram violentamente reprimidos pela polícia enquanto realizavam os tradicionais protestos do Dia do Trabalho, deixando clara a incapacidade do governo de dialogar com a população e de preferir o uso da força e a repressão acima de tudo.
É preciso ainda lembrar que a Turquia vive um eterno clima de terror e negação, com a repressão aos Curdos que habitam majoritariamente o leste do país e são diariamente reprimidos – em um momento de trégua com o PKK (o Partido dos Trabalhadores Curdos), que dura cerca de 5 meses, mas é envolta em tensão -, com a negação aos direitos religiosos de minorias não-sunitas, como os Alevitas, e a negação do genocídio armênio (começo do século XX) que, junto, traz a proibição sequer da discussão aberta sobre o tema, levando jornalistas e acadêmicos à prisão caso tentem negar a versão oficial do Estado Turco.
A Turquia não é uma ditadura, mas está longe de ser uma democracia.
Se configura como um Estado policial, que sofre constantes intervenções militares (golpes de Estado são uma constante na história turca), em perpétuo estado de alerta pelo seu conflito com os Curdos e em um processo lento, mas constante, de islamização, o que desagrada a importantes parcelas da população – mesmo sunitas laicos.
Ainda é preciso lembrar que a Turquia é vizinha da Síria, que encontra-se no momento em franca guerra civil e há o temor do conflito “respingar”, como já aconteceu no atentado à cidade fronteiriça de Reyhanli, em meados de maio. O medo do governo é de que a minoria curda local possa se aliar aos curdos sírios, que controlam diversas cidades fronteiriças, e mesmo que radicais sunitas possam usar a Turquia como base e espalhar o conflito.
Este temor dificulta o espaço de diálogo com o governo, já complicado, criando um estado constante de alerta e temor. E de suspeição. O conflito sírio, além do eterno conflito curdo, serve como desculpa para a negativa do governo em negociar, e para a escalada repressiva.
As ruas em diversas cidades turcas ficaram cobertas de sangue e gás enquanto milhares protestavam. Alguns falam em uma Primavera Turca, o que é irônico, considerando que Erdogan foi um dos líderes do Oriente Médio a defender a queda de Hosni Mubarak, no Egito, durante a Primavera Árabe.
Os protestos crescem, ao passo que a repressão policial acompanha este crescimento. Até quando os manifestantes e o governo irão aguentar esta queda de braço desigual?
Raphael Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero.