Desde a sua divulgação, o Estatuto do Nascituro tem causado polêmicas na sociedade. De um lado, uma questão moral e religiosa. De outro, uma questão de autonomia e saúde pública. Para entender um pouco sobre os paradoxos e as contradições deste tema, entrevistamos Érica Leonardo, que é doutora em filosofia e professora de Ética nos cursos de graduação de Biologia e Gestão Ambiental do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ). Confira a entrevista completa.
Qual a sua avaliação sobre o fato do feto ter mais direitos que a mulher viva? Que implicações morais envolvem a questão?
Minha avaliação é histórica e ética, embora meu sentimento em relação a isso seja de descontentamento e pavor. Penso que são vários elementos históricos e morais aqui relacionados. Primeiro, a respeito da moralidade cristã, podemos elencar o antigo mandamento moral de defesa e de acolhimento de um ser vivo “desprotegido”. O feto é um ser “que não tem voz própria” e “não tem lugar próprio” ainda, ele é um ser totalmente dependente da “vontade homicida da mãe”. Esse fato, de certa forma, facilita a atitude cristã de defesa dos pretensamente indefesos, aqueles seres que se mostram aos olhos de Deus e dos cristãos como os mais desprotegidos devem ser os que mais precisam de ajuda. O feto é uma vítima da mãe, do mundo e da maldade. A ingenuidade, a inocência e a pureza da “não voz” do feto (e do nascituro), justamente por ser uma “voz ainda silenciosa”, sem máculas, sem erros e sem degradações morais, fala mais alto aos ouvidos da moralidade cristã do que a voz da mulher que deseja abortar. A moralidade cristã acaba se arrogando do direito de falar pelo feto, com uma voz vitimizada. Está em jogo uma hierarquia, que considera o feto inocente perante a vontade mais que deplorável da mãe. A mulher que quer abortar é duplamente condenável: de início ela é assassina de seu próprio filho, um tabu milenar considerado antinatural, e não somente não cristão; segundo: a mulher que quer abortar é aquela que em sua vida “desregrada” usufruiu livremente do prazer do sexo, algo altamente condenável pela moralidade cristã, mesmo que, em pleno século XXI, e mesmo que de forma bastante dissimulada, a mulher precise “arcar” com a responsabilidade grandiosa e milenar de ser mãe. Correr o risco de fazer sexo precisa quase que necessariamente se relacionar com o risco da maternidade. É impensável e reprovável que uma mulher tenha uma relação sexual sem que o risco da maternidade não seja tomado quase como uma condenação do próprio ato de fazer sexo.
Quais as contradições da defesa intransigente do mais vulnerável?
Defender o mais vulnerável, antes de seu próprio nascimento, significa dizer que a própria mãe deve ser tolhida em relação aos deveres do Estado de defesa a vida do filho. Mas esse aspecto da entrada da figura da “infância vulnerável”, que remonta Rousseau e toda uma discussão teórica jurídica, política e psicológica daria uma tese. O que quero dizer é que a criança, o bebê, a infância foram de forma radical e erroneamente interpretadas como uma vida que merece “mais cuidados” e ‘mais direitos’ do que a época adulta. A linha é perigosa e tênue. Sim, a criança (o feto ou o bebê) é mais vulnerável que o adulto em certos aspectos mas, em minha opinião, deveria ser levado ao âmbito jurídico de uma forma mais reflexiva, não levando só em contra a defesa positivista da vida e/ou o peso moral e religioso que entende este vida como sendo mais digna de respeito e defesa do que a vida da mulher. O importante, no meu entender, é notar que a nova vida que se gera e toda a infância dessa vida é uma complexa e delicada relação que se põe imediatamente à mãe (que porta e gera a nova vida) e também ao pai, os parentes próximos, o próprio Estado e a sociedade como um todo. As mulheres que geram e todos que formam e movimentam esta época tão importante na formação do indivíduo, que é a infância, deviam ser chamados ao debate para decidir de forma mais pragmática e realista quem e quais são os verdadeiros atores da geração da vida e da formação do humano.
O que está por trás da condenação do aborto?
Condenar o aborto é, fundamentalmente, condenar a liberação sexual da mulher frente a sua condição procriativa. É dizer em alto e bom som, que ter uma vida sexual ativa é errado. Criminalizar o aborto é, antes de tudo, uma culpabilização de comportamento. Há muitos que falam: “Teve coragem de fazer sexo, mas não tem coragem de gerar e criar um filho?”. Não percebem que a vontade de sexo nada se relaciona com a vontade de gerar filhos. Uma coisa não se relaciona com a outra. Escolher ter uma vida sexual ativa é escolher ter prazer (não importando se este prazer vem acompanhado de sentimentos mais aceitos). As mulheres estão cada vez mais descolando o sexo do casamento, da maternidade, da condição estável de relacionamentos duráveis e da condição idealista e romântica do amor. Isso é altamente condenável até mesmo para os não religiosos.
Quais os perigos da culpabilização de comportamento?
Não importa se o sexo tenha sido brutal e sem consentimento, importa, em última instância, que ele tenha gerado uma vida, importa que ele cumpriu com a cadeia “natural” do sexo e geração de vida. É lógico, porém perverso, pois renega à mãe o direito de gerir as vontades provindas de seu próprio corpo, nega o direito de um corpo não gerar algo que a vontade da mulher não considera como digno de vida. No caso da defesa cega da geração de filhos frutos de estupro, a decisão quanto à dignidade da vida que se gera, estranhamente não parte da mãe, do corpo que gera, amaria e cuidaria, ou seja, a decisão é externa à pessoa que é imediatamente responsável por essa vida. O ser gerado deve ser amado, cuidado, educado e isso constitui-se como um dever lançado à mãe, muito embora ela esteja gritando que esta nova vida não pode ser amada. Significa que não importa o que se fez do corpo da mulher, este “corpo” não pode ter vontade própria quando única “vontade” a ser respeitada é a vontade de gerar vidas.
Quais paradoxos o Estatuto do Nascituro aponta?
O importante é notar que a nova vida que se gera e toda a infância dessa vida é uma complexa e delicada relação que se põe imediatamente à mãe. Como forçar a mulher que quer abortar a criar uma vontade externa e artificial tão contrária a sua vontade de não gerar? O Estatuto se nega a entender que a mulher, que gera a vida é dotada de vontade própria absolutamente distinta e contrária à responsabilidade de gerar e criar uma vida. O fato do aborto ser considerado um “ato criminoso” impõe às mulheres uma obrigação paradoxal de extrema radicalidade: de um lado a mulher que é livre, dona de seu corpo e com vontade consciente e responsável é considerada criminosa, já a mulher que é coagida e destituída do direito de posse de seu próprio corpo é considerada legítima.
Esses paradoxos também são encontrados na intervenção moral e religiosa?
Há um entendimento bastante salutar na ética aristotélica, que diz que uma pessoa só é responsável por seus atos, e neste caso prudente, quando ela mesma delibera (sem coação externa) e age como causa e meio de suas próprias ações. Uma vontade de gerar uma vida coagida por fatores externos é imprudente, irresponsável e nada pragmática. Mas o que está em jogo é a forma violenta com que o Estado (fundamentado pela religiosidade partidarizada cada vez mais atuante) coage a mulher de querer o que ela por direito não quer. Além de autoritário, é irresponsável.
A mulher lida com seu corpo e seus desejos de uma maneira bastante distinta daquela que a religiosidade e que a moralidade pretendem imperar a ela. Por uma série de mudanças e avanços comportamentais, sociais e biológicos a vontade da mulher não precisa mais ser coagida nem mesmo pelas determinações biológicas, a gravidez pode ser impedida, postergada e facilitada. Qual seria o motivo de coagi-la a ter uma gravidez indesejada numa determinação em que a própria mulher não participou com uma vontade consciente. A explicação é moral e a lei não deveria seguir esta imposição moral de alguns. Penso que a lei deveria ultrapassar a imposição moral, em prol da defesa da livre vontade da mulher.
É justamente nesse ponto que o estatuto se mostra paradoxal e violento ao criminalizar uma vontade que não quer ser geradora de uma vida com a condenação absolutamente contrária: gerar uma vida sem vontade é uma violência das mais primitivas e brutais. Quem não enxerga essa violência não enxerga a complexa relação física e biológica de hormônios e afetos envolvidas na geração, a delicada relação de responsabilidade entre mãe e filho, a situação altamente custosa, financeira e emocionalmente falando. Não enxerga ainda a liberdade da mulher de não querer ser mãe. Há, pois, uma condenação do ato pelo seu negativo absoluto. Você será condenada a gerar uma vida.