Portal da CUT-PR entrevista a presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Creuza Oliveira
Creuza Maria Oliveira começou a trabalhar aos 10 anos de idade. Recebeu o seu primeiro salário somente onze anos depois. Um dia, enquanto trabalhava, ouviu no rádio sobre uma mobilização de trabalhadoras domésticas que lutavam por seus direitos e resolveu participar. Não parou mais.
Desde então ela desenvolve um extenso trabalho em defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas. Indicada a diversos prêmios, Creuza mantém a simpatia, a raça e a gana, sempre.
A CUT Paraná ouviu, com exclusividade, a presidenta da Fenatrad que falou desde o seu início na luta por direitos, passando pelas dificuldades que enfrentou neste caminho, até a polêmica Proposta de Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas que continua travada no Congresso Nacional.
Como a Sra começou a trabalhar como doméstica?
Eu comecei a trabalhar com 10 anos de idade porque meu pai morreu muito cedo. Minha mãe ficou viúva e com filhos. Quando completei 10 anos fui trabalhar como doméstica no interior da Bahia, como babá, tomando contra de criança.
Quais são as principais diferenças que a Sra. vê hoje em comparação à época em que a Sra. começou a trabalhar?
Com certeza tivemos avanços importantes. A organização das domésticas no País tem 77 anos. A primeira organização foi em 1936 com Dona Laudelina Campos Mello, de Santos. De lá pra cá conquistamos, em 1972 a primeira lei, em 1988 conquistamos mais direitos com a Constituição Federal e em 2006 com presidente Lula avançamos mais.
Depois tivemos uma luta muito intensa para ir à Genebra na Conferência do Trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) em sua 100ª conferência aprovou uma convenção específica para as domésticas do mundo inteiro, que inclusive, 10 países já ratificaram a convenção, o Brasil que ainda não.
Mas o Brasil entrou com a PEC para alterar o artigo sétimo da Constituição Federal, que discriminava a trabalhadora doméstica quando dizia que é devido aos trabalhadores tais e tais direitos, exceto as trabalhadoras domésticas.
Então, a maior lei do País, discriminava a gente. Depois houve esta discussão da PEC, que ainda não está regulamentada, o que ainda nos leva a correr riscos de não equiparar os direitos com as demais trabalhadoras e trabalhadores do Brasi. Mas houve avanços com certeza.
Hoje o fato de termos sindicatos pelo Brasil é um avanço, termos uma Federação Nacional também é um avanço.
Na época em que a Sra. começou a trabalhar não apenas era criança, como havia o agravante do trabalho escravo, uma vez que a Sra. não recebia pelo seu trabalho, não era isso?
Não, não recebia. Recebia roupa usada e comida, que na verdade sempre digo, que não era nem comida, era resto de comida.
Eu só almoçava depois que todo mundo comia e aí minha patroa pegava a sobra da comida dos filhos dela, o que sobrou e para não jogar fora fazia meu prato e colocava um caldinho de feijão em cima e era isso que eu comia.
Fora disso, a roupa. Ela pegava as peças que não queria mais e mandava reformar para mim. Era raro eu ganhar uma roupa nova. Eu recebi meu primeiro salário com 21 anos.
Como a Sra. começou a participar deste grupo de discussão para tentar avançar na conquista de direitos? Como isso começou?
O movimento já existia no Brasil. Agora lá na Bahia começamos na década de 80. Tudo começou quando eu ouvi dizer, através do rádio meu grande companheiro, que existia um grupo de domésticas que estava começando a se organizar para lutar pelos seus direitos.
Então eu cheguei neste grupo, comecei a participar e não deixei mais. Em 1985 eu participei do 5º Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas do Brasil, em Recife. A partir de então eu pude ver que tinha doméstica lá do Paraná, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Santa Catarina e que o Nordeste quase todo tinha representação.
Assim eu pude ver as queixas das trabalhadoras domésticas de Norte a Sul. A queixa de não ter salário e de não ter direitos garantidos. Quando eu voltei deste congresso, retornei com certeza que não deveria deixar de participar da luta jamais.
Vou fazer 30 anos neste movimento, sou uma das fundadoras do Sindicato da Bahia que completou 24 anos, presido a federação nacional da categoria há 10 anos, sendo esse último ano o meu mandato, mas sempre tentando fazer um bom trabalho para dar visibilidade a questão do trabalho doméstico.
Já viajei para vários países levando a luta das domésticas do Brasil, como na Índia, África, Alemanha, Genebra, em várias conferências do trabalho, contra o trabalho infantil, já recebi prêmios diversos do Governo Federal pela luta contra o trabalho infantil, pela luta pela igualdade racial. Indicações como no caso da revista “Cláudia” no prêmio as mulheres que fazem a diferença e também fui indicada para o prêmio Nobel Mil Mulheres Pela Paz.
Então é uma luta que tem uma história, mas que não começou comigo. Começou com Dona Laudelina, uma mulher a frente do seu tempo. Se para nós hoje, que somos a quinta geração depois da morte de Zumbi dos Palmares, não é fácil imagine para Dona Laudelina de Campos Melo na década de 30.
Ela chegou a ir conversar com Getúlio Vargas quando ele aprovou o direito dos trabalhadores, ela foi conversar com seus ministros para ampliar estas conquistas também para as domésticas, situação só aconteceu em 1972 quando conquistamos os primeiros direitos que foram a carteira assinada, 20 dias de férias e INSS.
Então, o direito da carteira assinada para domésticas já tem 40 anos, não é coisa de agora. O que estamos lutando neste momento com essa PEC é a ampliação dos direitos.
O FGTS passar a ser obrigatório, adicional noturno, horas extras, o acidente de trabalho. Tudo isso que ainda não temos.
Qual foi a participação da Fenatrad na construção da PEC?
Em todas as discussões acumuladas ao longo destes anos fizemos audiências públicas com os ministros e deputados.
Tivemos avanços importantes a partir do Governo Lula, foi a partir de então que tivemos uma visibilidade importante. Por que? Porque quando o presidente Lula foi eleito e tomou posse, nós da Federação, fomos procurar o Ministério do Trabalho, cujo ministro na época era Jacques Wagner.
Levamos as nossas demandas e sentamos dizendo para ele: nós precisamos que o governo brasileiro se atente para a questão das trabalhadoras domésticas no Brasil, que são oito milhões de trabalhadoras, chefes de família, mães solteiras e que precisam ser olhadas com respeito e dignidade.
É uma reparação de uma categoria, após tantos anos, que constrói a sociedade mas não tem os direitos iguais, não é respeitada e ainda sofre com todo tipo de violência.
Eu digo para você porque como ainda sou uma moradora do Nordeste e conheço essa realidade. Ainda temos casos de trabalho escravo no trabalho doméstico, há pouco tempo tiramos uma trabalhadora em situação de escravidão, a Gabriela, que trabalhava desde os 10 anos até os 22 anos sem salário, sem férias, sem 13º salário. Quando a mãe dela morreu não deixaram ela sequer ter conhecimento do falecimento, coisas absurdas.
Este caso foi denunciado pelo 180, da Lei Maria da Penha, e então o Ministério Público e a Polícia foram lá averiguar e ficou constatado que tratava-se de trabalho escravo. Hoje ela está aí para receber os seus direitos.
Mas também temos casos de morte de trabalhadoras domésticas. Uma menina assassinada em Belém do Pará, onde eu acompanhei o julgamento. Ela era violentada, mal tratada e com 11 anos de idade foi assassinada.
E este tipo de situação ainda é comum?
É comum. Hoje bem menos, claro, do que a minha época. Mas com certeza ainda existe. Este caso de Belém do Pará tem uns três ou quatro anos, no qual, o casal foi condenado a mais de 30 anos de prisão.
E o que ainda falta para regulamentar a PEC para que ela, finalmente, entre em vigor?
Na verdade ainda falta o compromisso e responsabilidade dos parlamentares. Sabemos que não depende de nós, mas sim dos deputados. A PEC foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados. Depois foi para o Senado onde também foi aprovada por unanimidade. Mas depois disso foi criada uma comissão mista, com cinco deputados e cinco senadores.
O Senador Romero Jucá (PMDB-RR) é o relator. Então essa comissão mista de regulamentação era para fazer todo o processo para depois enviar à presidenta. Mas aconteceu que nessa comissão mista foi alterado tudo o que foi aprovado por unanimidade no Congresso.
Aí fomos para cima, nós, a CUT, as outras centrais fomos para cima e falamos que não aceitávamos a regulamentação sem a multa dos 40% do FGTS, com a questão da trabalhadora doméstica por tempo parcial que vai ser uma carga horária extensiva e estava esta proposta na regulamentação, a situação da trabalhadora doméstica viajante, o banco de horas de doze meses. Você faz hora extra e só vai receber 12 meses depois, imagina, não existe isso para nenhuma categoria.
Na verdade foi alterado tudo o que foi aprovado. O trabalhador tem direito a multa dos 40% e cinco meses de seguro desemprego, no caso das trabalhadoras domésticas só teria direito depois 15 meses de trabalho e apenas durante três meses.
Qual foi a equiparação que houve se continuar desse jeito? Só tem direito a FGTS quinze meses depois enquanto os outros trabalhadores é seis meses. O seguro desemprego só depois de 15 meses de trabalho e durante 3 meses. Aí não equiparou, continuou desigual.
A proposta da PEC era equiparar os direitos com os demais trabalhadores do Brasil.
E se essa PEC tivesse entrado em vigor 40 anos atrás? A Sra avalia que a sua vida teria sido diferente?
Com certeza não só a minha, mas a de muitas trabalhadoras domésticas que não tiveram a oportunidade de estudar.
Hoje nós temos um decreto que o presidente Lula assinou que proíbe o trabalho doméstico infantil como sendo da pior forma, ou seja, a trabalhadora só pode ser contratada a partir dos 18 anos. Na minha época não tinha isso.
Hoje temos o Estatuto da Criança e do Adolescente, temos essa medida que proíbe o trabalho infanto-juvenil até os 18 anos no trabalho doméstico, hoje as jovens adolescentes estão estudando mais do que antes. Naquela época não tínhamos nem para quem recorrer.
Sofríamos violência. Eu apanhei muito, sofri muito nas casas. Assédio moral, assédio sexual dos filhos da patroa e também do patrão e tudo. Imagine, hoje ainda tem essas coisas, mas é bem menos. Temos formas de denunciar, antigamente não. Era terrível.
E após finalizada essa luta da PEC, com a sua regulamentação exatamente como aprovada no Congresso, qual será a próxima luta das trabalhadoras domésticas?
Vamos continuar lutando, nunca vamos deixar de lutar. Mesmo os trabalhadores que já conseguiram os seus direitos, eles continuam lutando para garantir o que já conquistaram e querendo ampliar ainda mais.
No caso das trabalhadoras domésticas vamos continuar lutando para manter o que temos e conquistar novos direitos. Por exemplo, outras categorias tem direito a greve. Nós não podemos nem pensar em fazer greve pois a categoria não está totalmente organizada, conscientizada.
O trabalho doméstico é no âmbito privado, dentro da casa que ninguém vê, ninguém ouve o que acontece no ambiente de trabalho. Apenas a própria família que não vai querer contra a um filho, um marido ou alguém que tenha praticado algum tipo de violência.
Imagine que na semana passada, lá em Salvador, uma juíza aposentada acusou uma trabalhadora doméstica de furto.
Ela sofreu um terrorismo terrível dentro da casa para confessar o crime, para dizer para quem ela tinha vendido as joias. Ela chegou lá no sindicato chorando, depressiva. Ela foi torturada dentro daquela casa, então tivemos que encaminhar para acompanhamento psicológico e para o médico, já que ela estava em uma situação que poderia até mesmo ter um enfarto.
Registramos a queixa na polícia desta situação de violência. Então, teve uma irmã desta juíza que se propôs a depor contra a irmã. Ela disse ‘vai sim registrar queixa que eu vou depor a seu favor”, mas isso é muito raro acontecer.
Então vamos continuar lutando para empoderar as trabalhadoras domésticas, que são mulheres que já estão lutando por empoderamento, por reparação. As mulheres estão querendo ter direito de escolher a sua profissão e então nós vamos continuar lutando.
A luta nunca vai deixar de existir.
Escrito por: CUT-PR