Para o economista francês Gaël Giraud, as desigualdades de rendimentos e de patrimônio, mas também de acesso à educação, aos direitos, à internet, são fenômenos extremamente graves, pois são obstáculo à prosperidade econômica
“A ecologia econômica parece estar atualmente numa via mais promissora. Ela não é nem marxista, nem neoliberal. O seu objeto é a realidade de um planeta que nós estamos em vias de destruir. E não temos outro. A maior parte dos economistas dos dias de hoje já compreendeu que a transição ecológica é inseparável de uma transição social”, sustenta o professor doutor Gaël Giraud em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Para o economista, os mais ricos, independentemente dos países, são os que mais poluem o planeta, causando, portanto, a destruição do clima e da biodiversidade, o que resulta em um processo de desumanização.
“A miséria afunda os mais pobres num inferno e a ultrarriqueza isola os mais ricos num gueto separado do resto da humanidade, em pânico de perderem o seu conforto, incapazes de participar de um projeto histórico e político que ultrapasse as dimensões que são próximas da sua vida de luxo. Praticar a justiça é uma libertação não somente das vítimas como também dos carrascos”, aponta.
O que o senhor entende por desigualdades e como fundamenta esse conceito?
Gaël Giraud – Na atualidade, uma pequena centena de pessoas no mundo possui uma riqueza equivalente à metade da humanidade. Possivelmente, nunca tínhamos esperado tal nível de desigualdade no planeta. As desigualdades de rendimentos e de patrimônio, mas também de acesso à educação, aos direitos, à internet, são fenômenos extremamente graves, pois são um obstáculo à prosperidade econômica. Não somente para os mais pobres — é evidente —, mas também para os mais ricos. De fato, aumentar indefinidamente a riqueza de uma porção de indivíduos não facilita, de todo, o crescimento: a tese de que a opulência dos ricos será benéfica para todos é uma impostura intelectual. O aumento da desigualdade penaliza mesmo os mais ricos na sua vida e na sua própria saúde. É o que mostra, por exemplo, uma excelente obra de Pickett et Wilkinson,The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better (London: UK Hardback edition, 2009). Também é preciso considerar que os mais ricos são aqueles que mais poluem o planeta. Sejam chineses, norte-americanos ou brasileiros, são eles que carregam a mais forte responsabilidade da destruição do clima e da biodiversidade. Enfim, o aumento das desigualdades provoca a desumanização: a miséria afunda os mais pobres num inferno e a ultrarriqueza isola os mais ricos num gueto separado do resto da humanidade, em pânico de perderem o seu conforto, incapazes de participar de um projeto histórico e político que ultrapasse as dimensões que são próximas da sua vida de luxo. Praticar a justiça é uma libertação não somente das vítimas como também dos carrascos.
A discussão acerca da maneira de enfrentar as desigualdades sociais, a partir de uma perspectiva econômica, deve considerar a acumulação financeira e o funcionamento do mercado financeiro de modo geral e não mais o modo de produção capitalista?
De fato, a desregulamentação financeira, iniciada nos anos 1980, tem a responsabilidade essencial da explosão das desigualdades nestes últimos 30 anos. Os Trinta Gloriosos (1945-1975) na Europa e nos Estados Unidos mostraram que é possível ter uma prosperidade de massa, em um contexto capitalista, com pouca desigualdade. Isso supõe que os mercados financeiros jogam um papel mínimo na nossa economia. É completamente falso pretender que os mercados financeiros sejam eficientes. Sabe-se, em economia, depois dos anos de 1980 que, mesmo estando repletos de senhores hiper-racionais, os mercados financeiros geriram de maneira bastante ineficaz o risco e o capital. Na verdadeira vida, os mercados financeiros servem essencialmente para captar a renda produzida pelo trabalho dos cidadãos, monopolizados por uma minúscula minoria de jogadores: quando estes ganham as suas apostas, retiram os benefícios privados e, quando perdem, é o contribuinte quem tem de pagar as dívidas.
O que o senhor tem evidenciado em suas pesquisas sobre a crise financeira desde 2008 e as desigualdades sociais no mesmo período?
A bolha subprime foi tolerada pelas autoridades econômicas e monetárias dos Estados Unidos, entre 2001 e 2007, na esperança de permitir a um grande número de famílias norte-americanas pobres se tornarem proprietárias das suas casas. Há menos proprietários nos Estados Unidos em 2008 que em 2001. Tentar manter o mercado imobiliário pela dívida privada é uma falência completa. Na Europa, uma grande parte dessa dívida privada tornou-se insolvente e afundou numerosos bancos. Muitos acabaram por ser salvos ou nacionalizados pelos Estados, que, de um dia para o outro, viram a sua dívida pública rebentar. Ora, as classes médias europeias pagam em geral mais impostos que os mais ricos. São, então, as classes médias que vão pagar a fatura da crise financeira. As desigualdades continuam, assim, a aumentar.
O senhor dá a entender que os bancos são, hoje, os grandes vilões da atual situação social e os responsáveis pela crise. Como mudar esse cenário? O que é possível fazer para frear essa situação?
Sim, o setor bancário, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, adquiriu um poder de perturbação considerável. Alguns bancos têm um balanço que pesa mais que o Produto Interno Bruto (PIB) de um Estado desenvolvido. Além disso, a desregulamentação financeira volta a dar-lhes um poder considerável. Está claro que é possível mudar tudo isso. Já expliquei em diversas obras como isso pode ser possível. Grosso modo, no meu ponto de vista, é necessário cortar os bancos mistos em dois, ou seja, voltar a colocar o Glass Steagall Act que nos permitiu desfrutar, nos anos de 1960, um período de serenidade, sem uma maior crise bancária. Depois, é preciso colocar o Banco Central sob o controle de um poder político democrático. Atualmente, a independência do Banco Central é um eufemismo para dissimular o fato de que ele obedece unicamente aos desejos do setor bancário privado. Enfim, há que retirar dos bancos privados o direito de criar a moeda: é o famoso “plano de Chicago” que tinha sido proposto pelos grandes economistas norte-americanos nos anos 1930. Um economista do Fundo Monetário Internacional (FMI), Michael Kumhof, mostrou recentemente que uma reforma será bastante benéfica para todo o mundo — menos, talvez, para os banqueiros. As soluções existem. O que falta é a vontade política. Essa falta se deve ao fato de que grande parte dos políticos nos governos, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, provém de classes favorecidas, que não têm interesse na reforma financeira de modo a reduzir as desigualdades e assegurar a prosperidade de todos.
Quais as razões da falência do estado de bem-estar social na Europa?
Há imensas razões para esta falência. Espero que não seja definitiva. Uma das razões é a inversão do projeto político europeu em uma máquina de destruição do Estado-Providência. A Europa tornou-se, há 20 anos, a Europa dos financeiros: estes destruirão o nosso continente até que os políticos deem um “murro na mesa”.
Os que defendem uma proposta neoliberal argumentam que se trata de um modelo que garante a liberdade. Os que argumentam que é preciso maior interferência do Estado sustentam que é necessário mais igualdade. Esses conceitos e essas visões são suficientes para entender a complexidade que se vive hoje? Há uma terceira via? Parece-me que o debate tradicional “liberdade versus igualdade” já não é a melhor maneira de compreender o nosso mundo. Na realidade, o neoliberalismo destrói as nossas liberdades. É uma economia essencialmente fundada sobre a dívida, e tal já vem desde 5000 anos atrás, como muito bem demonstrou David Graeber. Quando se tem muitas dívidas, acaba-se por se tornar escravo (no sentido literal e figurado) do credor. Se queremos sair do servilismo, temos de sair do neoliberalismo.
Qual é sua proposta para diminuir as desigualdades sociais e garantir acesso a bens básicos, tendo em vista esse cenário e a falência das propostas das esquerdas em todo o mundo?
Penso que é necessário ter em consideração a importância vital da energia e das matérias naturais (nomeadamente os minerais) nas nossas economias. A maior parte dos economistas negligencia completamente este ponto. Ora, os recursos naturais não são extensíveis ao infinito. E as últimas notícias do GIEC no Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) referentes ao clima são literalmente catastróficas. Então, é extremamente importante, se queremos garantir um mínimo vital para todos, em que o conjunto dos países ricos (onde se inclui o Brasil) ponham em prática, de modo voluntário, a transição energética: a passagem de uma economia essencialmente fundada sobre as energias fósseis (gás, carvão, petróleo) para outros tipos de energia: as renováveis e/ou nucleares. Sem estas, tenho receio de que, nos anos próximos, a fratura social mais importante será aquela que vai separar as populações com acesso à energia das que não têm acesso. Não excluo a possibilidade de uma terrível regressão social: qualquer coisa como um retrocesso à Idade Média. Sem contar com as múltiplas guerras que já começamos (nomeadamente no Médio Oriente) para garantir o acesso aos recursos energéticos. A social-democracia ocidental não compreendeu ainda a importância da transição energética. As indústrias do mundo inteiro, elas, sim, compreenderam muito bem e esperam com impaciência que os políticos saiam da sua fascinação pelas finanças e desbloqueiem finalmente as soluções de financiamento para começarem a transição.
Recentemente, ao falar da crise da esquerda na França, o senhor mencionou a criação do Partido Nouvelle Donne como uma possibilidade promissora. Por quais razões? A esquerda ainda tem algo a oferecer para as discussões econômicas, políticas e sociais? Aqui no Brasil há uma expectativa em relação aos movimentos que surgem sem lideranças no sentido de propor algo novo, mas na Europa já há sinais de que movimentos como esse também não conseguiram mudanças e avanços, a exemplo do 15M. O que fazer?
O exemplo dos “Indignados” na Espanha parece-me revelador. Os espanhóis saíram à rua aos milhões, durante meses e meses. No imediato, de forma estrita, não deu nada no plano político, e até foi o Partido Popular que acabou por ser eleito, mesmo quando este partido, no tempo de Aznar, no princípio dos anos 2000, foi altamente responsável pela entrada da Espanha na bolha subprime. A razão da falência de um movimento social assim de multidões na Espanha é a incapacidade da classe política espanhola em articular a indignação social com um verdadeiro programa político. A social-democracia tornou-se neoliberal e, de pronto, deixou de pensar. Atualmente, os partidos socialistas europeus têm um eletroencefalograma plano. É por isso que a criação do partido Nouvelle Donne me parece uma excelente notícia: aí está um partido de centro-esquerda que formula um verdadeiro diagnóstico sobre a situação atual, que quer regulamentar as finanças, reduzir as desigualdades (pelo imposto sobre o crédito e sobre o capital), lançar a transição energética.
Em que consiste o Tratado de Livre Comércio em negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos, e como o senhor o avalia tendo em vista o atual cenário político, econômico e social do mundo, ou seja, este momento de crise?
O Tratado transatlântico é uma catástrofe, aumentada pela soberania política dos Estados da linha do Atlântico Norte. De fato, este Tratado de livre-troca vai autorizar uma empresa norte-americana ou europeia a processar um país, levando-o a adotar as leis que estão de acordo com os interesses da empresa. O tribunal ad hoc que regulamentará o litígio apenas se apoiará no direito comercial internacional e no tratado. De modo particular, até mesmo a constituição de um país não entrará em linha de consideração. Se assinarmos um tratado assim, é o fim do Estado na Europa. Os verdadeiros governantes serão os donos das empresas. Eu penso que, se assinarmos um tratado assim, a reação das populações será idêntica à da população dos anos trinta. Acabarão por eleger os ditadores neofascistas para lhes salvar da ditadura das multinacionais. Tudo isso é bastante perigoso.
Entre as escolas econômicas existentes, alguma dá conta de propor soluções?
A ecologia econômica parece parece estar atualmente numa via mais promissora. Ela não é nem marxista, nem neoliberal. O seu objeto é a realidade de um planeta que nós estamos em vias de destruir. E não temos outro. A maior parte dos economistas dos dias de hoje já compreendeu que a transição ecológica é inseparável de uma transição social: em particular, não chegaremos a iniciar esta transição de forma eficaz enquanto uma minoria muito pequena continue a monopolizar o essencial da riqueza e dela servir-se para destruir o ambiente e esgotar os nossos recursos.
Fonte: Patricia Fachin e Ricardo Machado, do IHU
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