50 anos do assassinato do engenheiro Rubens Paiva

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“A gente morava no Leblon. Meu pai era engenheiro, era diretor de uma empresa de engenharia. Ele ia muito à praia, jogava vôlei. Estavam todos voltando para casa, era um fim de semana e de repente aparece a polícia, à paisana, e o intima, quer levá-lo para depoimento. Assim era dito. Mas com gente armada dentro de casa. Meu pai tinha cinco filhos, eu não estava em casa naquele momento, mas meus irmãos estavam, minha mãe estava. Ele vestiu o terno, a gravata, e espertamente decidiu ir dirigindo o seu próprio carro. Minha mãe foi presa no dia seguinte, ficou dez dias, minha irmã de 15 anos também. Quando minha mãe foi solta e voltou para buscar o carro, ela assinou um recibo, e ela tinha uma cópia desse recibo. Por muito tempo, essa foi a prova única que a gente teve de que ele tinha sido preso”.

Assim foi a prisão ilegal de Rubens Paiva, quase um sequestro, conforme sua filha Vera Paiva conta ao TUTAMÉIA agora, quando se completam 50 anos de assassinato do ex-deputado federal, defensor da democracia e batalhador das grandes causas nacionais. Rubens Paiva inspirou a lei 4.950-A/66, que instituiu o Salário Mínimo Profissional (SMP) para engenheiros, agrônomos, arquitetos, médicos veterinários e químicos, e é de autoria do então deputado Almino Affonso.  [Leia mais AQUI sobre essa história].

“Meu pai foi muito mais tempo um engenheiro do que um parlamentar, um deputado. Ele gostava de ser conhecido e definido como engenheiro. Ele se formou engenheiro na Mackenzie. Ao longo de sua vida estudantil, foi do movimento estudantil, da UEE (União Estadual de Estudantes), lutando pelo “petróleo é nosso”, pelo desenvolvimento nacional, por um país justo”, diz Vera, que é psicóloga, professora do Instituto de Psicologia da USP, uma referência na luta por direitos humanos e por memória no país, além de pesquisadora na área de sexualidade e de prevenção à AIDS.

Ela segue falando sobre o pai, que tinha 41 anos quando foi assassinado sob tortura no Rio de Janeiro: “A vida inteira ele teve orgulho de ter conseguido contribuir para a construção da Petrobras, para a nacionalização do solo brasileiro… Imagina se ele estivesse assistindo toda essa questão do pré-sal hoje em dia e tudo o que nós vivemos ultimamente…. Na nossa infância, quando íamos para a praia, em Santos, passávamos pela usina de Cubatão, ele fazia a gente gritar: ‘Viva, o petróleo é nosso; viva, o petróleo é nosso!’ Esse era o Rubens Paiva, um cara muito bem humorado, cheio de amigos, ele gostava de fumar charutos, a nossa casa vivia cheia de gente”, rememora.

Quando tinha pouco mais de 30 anos, o engenheiro decide entrar na política partidária, conta Vera. “Um grupo do PSB, o Partido Socialista, ele foi um dos fundadores, um grupo decidiu encaminhar uma candidatura, e ele resolveu se candidatar a deputado federal. E aí foi dois anos deputado. Ficou dois na Câmara Federal de 1962 a 1964, quando teve o golpe. Enquanto esteve lá, ele presidiu a CPI que investigou a participação de empresas norte-americanas, petrolíferas muitas delas, financiando campanhas para o parlamento naquela eleição de 1962. E conseguiu provar e mostrar o envolvimento direto dos americanos, do Estado norte-americano e das empresas norte-americanas já investindo, em plena Guerra Fria, na eleição brasileira, o que horrorizava boa parte dos brasileiros naquele momento. Muitos amigos deles, contemporâneos, acham que a imediata cassação dele, no golpe de 1964, e mesmo a perseguição insana muitos anos depois, quando ele foi para o exílio, voltou do exílio e continuou participando da vida política, mas trabalhando como engenheiro, que a violência com a qual ele foi preso está associada também a esse tipo de atuação enquanto parlamentar.”

Violência que a ditadura, covardemente, tentou esconder, aponta Vera: “A prisão, imediatamente, como ele era um cara respeitado inclusive pelos seus inimigos político, teve uma repercussão internacional importante, especialmente via democratas norte-americanos, houve uma movimentação importante, eles negaram que ele tivesse sido preso. Aí a suspeita de que ele foi morto logo em seguida, que a gente só confirmou mesmo quando a Comissão Nacional da Verdade obteve alguns depoimentos desfazendo do teatrinho montado para negar a prisão dele, que foi um fusca incendiado na floresta da Tijuca, fotos nos jornais, governantes dizendo que ele tinha sido sequestrado por terroristas. A insanidade maior foi a gente passar anos recebendo telefones, em casa, minha mãe atendia os telefonemas, alguém dizendo: “Ah, seu marido tá aqui em Cuba!” Uma tortura associada, permanente, em particular da minha mãe, insinuando que ele estava aqui, que eles estava lá, que ele tinha outra família, fingindo que ligava de Cuba, no sentindo de despistar aquilo que estava acontecido com ele.”

Ao longo da entrevista, Vera Paiva fala sobre como esse saber-sem-saber impacta a família, a dor de não poder realizar o luto, não fazer a despedida final –como acontece hoje, lembra a psicóloga, com muitas famílias dos mortos pela covid-19.

Debate também as razões da violência e o surgimento no cenário brasileiro de uma figura como Jair Bolsonaro, defensor da tortura e da morte. Conta, por exemplo, o episódio grotesco em que o hoje presidente, então deputado, xingou familiares e investiu contra o busto de Rubens Paiva que estava sendo inaugurado na Câmara Federal.

Vera Paiva chama todos a lutarem pela democracia, pela sanidade, pela vida.

“Uma das coisas que sempre marcaram a reação de nossa família é não singularizar a nossa história. Minha mãe, quando virou advogada, foi defender a causa indígena, que é o maior caso de genocídio. Os povos indígenas foram massacrados na ditadura, e há pouquíssimos registros do que aconteceu com os povos indígenas naquele momento. A gente não pode perder a solidariedade com a quantidade de desaparecidos e mortos na ditadura. De alguma maneira, a gente tem de virar o jogo de que isso é natural, de que isso é aceitável. Não é possível essa naturalização da violência, que afeta brutalmente as famílias pelas periferias do Brasil”, relembra.

E segue: “Eu sou profundamente solidária com cada um dos mortos e desaparecidos de hoje. Não esquecer que o que acontece desde então começou com a escravidão e se acirrou nas ditaduras que a gente viveu. Mas há um lastro de humanização da sociedade brasileira, da civilização, na direção da democracia, da igualdade, de superar as desigualdades, que foi a causa de meu pai e de minha mãe, e de nós todos, que continuamos, cada um do seu jeito, fazendo.”

É difícil, mas é necessário. E é bom: “A gente fica exausta, como a gente está nesse momento. Tem de cuidar da exaustão, cada um do seu jeito, nem todo mundo é herói, eu fiquei anos tratando, cuidando de afetados por HIV/Aids e seus familiares, agora estamos todos na covid, horrorizados, procurando fazer o melhor que podemos. É preciso esperançar, como dizia Paulo Freire, se cuidar na exaustão, recolher, depois criar energias de novo para continuar mudando o mundo numa melhor direção. Vale a pena. Mantém a gente melhor, também. Ao fazer o bem, a gente também faz bem para a gente. E nos cuidemos da covid e de toda essa desgraceira política que está aí.”

Fonte: Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena Tutaméia